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A política cubana sob o olhar da imprensa brasileira

A POLÍTICA CUBANA SOB O OLHAR DA IMPRENSA BRASILEIRA

Por Júlia Fialho e João Feres Jr.

A história de Cuba passa pela colonização de suas terras e povos nativos, assim como a nossa. Os indígenas da ilha lutaram contra a subjugação. Lutaram também os africanos contra sua escravização. Com o passar do tempo, alguns poucos donos de terras monopolizaram o poder na ilha. Houve conflito também quando estes grandes latifundiários começaram a expulsar os pequenos agricultores de suas terras para expandir suas plantações de cana-de-açúcar e fumo. A ilha foi alvo de pirataria e saques que enriqueceram outras nações. A Espanha, ultrapassada na competição colonial pelas novas grandes potências, Inglaterra e França, tentou manter o comércio da colônia exclusivo, causando rebeliões camponesas que inspiraram outros conflitos armados. 

A Espanha perdeu seu posto como colonizadora da ilha quando os Estados Unidos lhe moveu uma guerra ao final do XIX, que teve como resultado a anexação, por parte do vencedor, do que restava do império mundial espanhol.  O custo da independência cubana foi a eterna dívida com os heróis libertadores, que agora poderiam intervir, econômica e militarmente, como e quando quisessem no país por meio da Emenda Platt. A partir disso, a política em Cuba seguiu de acordo com a vontade do governo estadunidense. Em suma, a república nasceu com um enorme déficit de autonomia. 

A revolução veio como uma resposta a toda história de exploração e dominação do povo cubano aos interesses estrangeiros. Nem todos que participaram da revolução tinham inclinação socialista. O próprio Fidel Castro não tinha pretensão inicial de promover mudanças tão radicais. Estas foram tomando forma ao longo do processo de construção da República. Após a destruição do aparelho repressivo da Ditadura de Batista, o Exército Rebelde se tornou o centro do poder na ilha e participou ativamente da construção do país. A República Cubana forjou sua independência dos EUA, mas mantém em seu território, como um enclave, a base militar de Guantánamo, ocupada pelos estadunidenses que a utilizam inclusive como presídio para seus opositores. 

A ilha se tornou oficialmente socialista em 1960. Antes disso, Fidel Castro foi eleito primeiro-ministro em 1959, cargo que exerceu até 1976, quando então se tornou presidente de Cuba. Em 2006, em decorrência do adoecimento de Fidel, seu vice, Raúl Castro, ocupou interinamente seu lugar. Em 2008, quando ocorrem novas eleições, a Assembleia Nacional elege Raúl Castro como presidente de Cuba. Nesta ocasião, o presidente declara que vai se enquadrar na nova norma que determina a permanência em cargos oficiais por, no máximo, dois mandatos de cinco anos. 

Em 2013, no início do seu segundo mandato, Raúl anuncia seu provável sucessor, Miguel Díaz-Canel, cuja trajetória política remonta aos anos oitenta na União dos Jovens Comunistas. Com o tempo, Díaz-Canel foi galgando posições de destaque dentro do governo. Em 2009, conquistou o cargo de Ministro da Educação, em 2012 se tornou vice-presidente do Conselho de Ministros e em 2013 foi vice-presidente do Conselho de Estado, acumulando os dois cargos.

A representação de Cuba na imprensa brasileira é repleta de inconsistências. Com um enquadramento majoritariamente negativo, os meios constantemente reforçam as falhas na condução do projeto político cubano, realizado pelos irmãos Castro, além de advogar constantemente pela abertura econômica e política da Ilha dentro dos moldes capitalistas. O objetivo deste ensaio é mostrar como os jornais brasileiros retrataram o regime cubano em duas oportunidades: no anúncio da renúncia de Raúl Castro, em 2013, e nas eleições de 2018. Para isso selecionamos e analisamos editoriais dos jornais Folha de São Paulo, Estado de São Paulo e O Globo. 

A RENÚNCIA DE CASTRO E A OPINIÃO DOS JORNAIS

O anúncio feito pelo então presidente de Cuba, Raúl Castro, acontece junto com uma série de mudanças entendidas pelo Partido como necessárias para o fortalecimento das instituições e do socialismo no país. No dia 26 de fevereiro de 2013, os três jornais analisados se manifestaram sobre a decisão. No editorial “A “renúncia” de Raúl”, publicado no Estado, o termo entre aspas deixa claro o posicionamento do jornal sobre o ato de Castro. Através de adjetivos como “regime de força”, “ditadura” e “castrismo” o meio constrói a ideia de uma ditadura familiar. O editorial rememora George Orwell e seu livro “A Revolução dos Bichos”, igualando a paródia da sociedade soviética à cubana e buscando desumaniza-la ao colocar Cuba no estágio de barbárie em contraposição ao capitalismo civilizado. 

O jornal paulista passa uma ideia equivocada do processo eleitoral cubano afirmando que ele é controlado pelo Partido Comunista. Vê de forma positiva o fato do indicado para a sucessão não ser da família Castro, mas identifica em Díaz-Canel um demasiado envolvimento com o Partido Comunista e fidelidade aos irmãos Fidel e Raúl, o que o impediria de atuar autonomamente. Sugere o jornal que um apadrinhamento na indicação de Díaz-Canel serviria ao propósito do então presidente continuar dando as cartas na política. O editorial não encara a juventude de Díaz-Canel como prenúncio de mudanças estruturais, logo a possibilidade dele ser um renovador, tal qual um “Gorbachev caribenho” como foi caricaturado, é apresentada como pouco provável. 

O meio infantiliza o povo cubano ao omitir sua participação ativa em variados processos eleitorais em diversas instâncias, caracterizando-o como passivo espectador à espera de um dissidente salvador. É importante destacar que em Cuba, o processo eleitoral se verifica em diversas instâncias desde os bairros. O processo conta com a participação ativa dos cidadãos, que elegem seus candidatos nas Assembleias Municipais do Poder Popular. Qualquer pessoa pode concorrer nas eleições, pois não há necessidade de filiação ao partido. Os eleitos, por sua vez, devem votar pela aprovação ou não dos delegados das Assembleias Provinciais e dos deputados da Assembleia Nacional. 

No mesmo dia, a Folha publica editorial com o título “Transição à moda Castro” e do mesmo modo que o outro meio paulista desqualifica o governo cubano definindo-o como um arranjo familiar ditatorial.  Se referindo a Raúl Castro, o jornal usa o termo “ditador” e classifica seu provável sucessor como “raulista”, para indicar sua vinculação ao líder. Ao contrário do Estado, o jornal dá ênfase à idade de Díaz-Canel, 52 anos, e assume que ele representa uma nova geração, diferente de boa parte da composição do governo. Para a Folha, a relativa pouca idade de Díaz-Canel foi “a grande novidade” da transição. Uma fala de Raúl ganha destaque: fui eleito para defender, manter e aperfeiçoar o socialismo, não para destruí-lo. O trecho selecionado sugere a pouca probabilidade de mudanças estruturais. 

O editorial finaliza traçando um paralelo entre as reformas econômicas introduzidas na China com as cubanas, estas classificadas como “estímulos pontuais a negócios privados e nenhum sinal de alterações no sistema autoritário de partido único” dando uma visão de regime engessado e envelhecido. O texto apregoa que as “diferenças geográficas e demográficas”, juntamente com o embargo econômico determinado pelos EUA, impedem que o desenvolvimento cubano se dê da mesma forma que o chinês e o vietnamita. 

Já no Globo, o editorial “Mudança lenta, gradual e restrita em Cuba” alude à ditadura militar brasileira através da frase “abertura lenta, gradual e segura de Ernesto Geisel, transportando o leitor para aquela realidade. O texto critica o anúncio da mudança de governante e noticia o fim da “Era Castro”, que já dura 60 anos, de forma personalista, ocultando um Estado com estrutura jurídica e política. O meio cita os passos dados por Raúl Castro em direção a uma flexibilização da economia, mas os vê como muito tímidos e lentos. A crítica feita à lentidão da “mudança”, dá a entender que é vontade pessoal e não um planejamento estratégico que vem sendo implementado. 

O governo cubano é taxado pejorativamente como “regime stalinista tropical”, um apelo midiático à carga negativa vinculada à imagem do ex-líder soviético e uma associação com uma suposta repressão brutal aos opositores do governo cubano. O jornal carioca aponta a indicação de Díaz-Canel não como renovação por este ser mais jovem, e sim como continuísmo, pois Raúl passaria o bastão para uma figura alheia à Revolução, mas controlada por antigos líderes. Por outro lado, vê com bons olhos a nova regra implementada por Castro, que fora incorporada à sua gestão, de dois mandatos com duração de cinco anos cada para cargos oficiais. Por fim, sugere que cabe a Díaz-Canel a tarefa de modernizar o socialismo e democratizá-lo e destaca Barack Obama como possível facilitador desta democratização, pois estaria em suas mãos a flexibilização do embargo.

AS ELEIÇÕES CUBANAS E A OPINIÃO DOS JORNAIS

Em abril de 2018, período das eleições em Cuba, os editoriais dos jornais se manifestaram novamente sem grandes mudanças no discurso. No Estado de São Paulo, o tema foi destaque no editorial “Novo nome, mesmo regime” que sugere uma “maquiagem” no novo governo, ao se apresentar um nome diferente para a presidência. Caracteriza o regime cubano como uma ditadura e indica que Miguel Díaz-Canel, “o primeiro-líder que não participou da revolução”, seria mera marionete de Raúl. É concedido a Castro o status de líder político autoritário que define as diretrizes estratégicas e políticas da economia, dos costumes e das forças armadas. 

As reformas econômicas implementadas por Raúl e a extensão ao acesso à internet à população são colocadas como superficiais e controladas pelo regime cubano. O jornal destaca como grande feito do governo de Raúl o restabelecimento de relações diplomáticas com os EUA e qualifica a ilha como triste exceção ditatorial na América ao lado de regimes bolivarianos. Conclui auspiciando que o novo presidente dê um passo à frente de Raul e promova as reformas políticas. No entanto, o ceticismo quanto a essa possibilidade é grande por não visualizar base de sustentação à Díaz-Canel para este feito.

Na Folha, editorial “Renovação à Cubana”, publicado em 19 de abril, repete o discurso de 2013, no qual Díaz-Canel seria um arremedo mais novo dos antigos líderes e obediente aos mesmos. Como o Estado, o editorial da Folha caracteriza o governo cubano como uma ditadura militar de partido único, onde Raúl Castro lidera o Partido Comunista e as Forças Armadas. O meio afirma que os militares controlam mais da metade dos negócios, mas não apresenta dados. A relação entre Cuba e EUA é trazida novamente à tona na figura de Donald Trump que, segundo o jornal, “não quer relações com a ilha”. O editorial sugere que a abertura à livre iniciativa é a única “saída” e vaticina a não recuperação econômica de Cuba sem o reatamento das relações com os EUA. Termina dizendo que o “rebaixamento” de Raúl não significa a perda do protagonismo e que a figura “discreta” do “ungido” Díaz-Canel é pouco confiável para uma empreitada de renovação e abertura.

No Globo, o título do editorial “O novo presidente tem que avançar reformas em Cuba” adota tom impositivo determinando a tônica a ser seguida pelo governo. O meio afirma que Díaz-Canel deverá implementar mudanças políticas e econômicas que demonstrem sua disposição de abertura, ignorando o recuo imposto por Trump às relações com os EUA, pelo bem do povo cubano. A matéria destaca mais os feitos de Barack Obama, dando-lhe o protagonismo no retorno das relações diplomáticas entre os dois países, do que a posse do novo presidente cubano. Dentre os editoriais analisados, foi o único a registrar que Díaz-Canel fora eleito pelos 604 delegados da Assembleia Nacional de Cuba.  

CONCLUSÃO

O anúncio da renúncia do presidente Raúl Castro em 2013 e sua confirmação em 2018 com a eleição do ex-vice-presidente, Miguel Díaz-Canel, evidencia uma aparente frustração com a expectativa de abertura econômica que todos os veículos colocam como essencial para a salvação do país. Fica bastante notório que, nos três jornais, há uma rejeição do sistema político e econômico de Cuba, o que nas entrelinhas redunda em negação do direito de autodeterminação daquele país. Na maior parte dos textos é possível identificar uma linguagem jocosa e burlesca em suas narrativas ao se referirem ao governo e suas políticas.

O retorno às relações diplomáticas com os EUA é constantemente invocado como a solução para os problemas enfrentados por Cuba, dando a entender que ele não se realiza plenamente devido à falta de vontade do governo cubano.Se por um lado são rápidos em condenar o regime cubano, o bloqueio imposto pelos EUA a Cuba não é objeto de reprovação. Ou seja, as relações de Cuba com as outras nações são cerceadas por um país que se arroga “a maior democracia do mundo”, mas que se nega a dar fim ao desbloqueio apesar das reiteradas votações pelo fim do embargo na Assembleia Geral da ONU. Cabe ressaltar que o Brasil, atualmente sob o governo Bolsonaro, mudou de posição e passou a apoiar  a manutenção do bloqueio em claro alinhamento com os EUA e Israel. 

A visível supressão das informações sobre o processo eleitoral cubano só aumenta a percepção da parcialidade com a qual os editoriais trabalham o tema. A grande mídia rotineiramente invoca o estigma ditatorial aos governos que se pretendem progressistas ou socialistas, pois veiculam a ideia de que a democracia só é possível no modelo eleitoral implementado especialmente pelos EUA, Inglaterra e até mesmo no Brasil. 

Tal comparação é infundada pois o sistema eleitoral cubano é diferente do brasileiro. A ilha é uma República Unitária  na qual o partido único não é sujeito ativo do processo eleitoral e não apresenta candidatos. Ao partido, que está acima das instituições estatais e não é eleitoral e sim institucional e dirigente, cabe propor pautas e projetos à Assembleia Nacional e ao governo.  A ideia de partido único é inspirada na experiência soviética, que compreendia não haver necessidade de mais partidos em uma sociedade que se propõe a não ter divisão de classes. A participação popular é na verdade extremamente requisitada para a construção do governo, visto que os candidatos são escolhidos pelos cidadãos cubanos. O representante político não é considerado um “político profissional” e não é remunerado. Ele mantém sua profissão que garante seu salário e acumula funções. A oposição, ao contrário do que muitas vezes é noticiado pelos meios de comunicação, existe e se manifesta eleitoralmente, porém, não é expressiva o suficiente para alterar o modelo existente. 

Ainda no governo de Raúl Castro, em uma conferência do partido no ano de 2013, foi anunciada a proposta de reforma constitucional e traçado o Plano de Desenvolvimento Econômico e Social. A proposta foi aprovada pela Assembleia Nacional e pelo referendo popular, recebendo 86,85% dos votos favoráveis em fevereiro de 2019. Estas alterações, aos poucos, tendem a diminuir a burocratização e a hierarquização do sistema. A Assembleia Nacional, por exemplo, adquiriu poder de veto sobre decretos presidenciais que firam a Constituição. As atualizações da Constituição referendadas pelos cidadãos trouxeram mudanças nos mecanismos democráticos e alterações no sistema econômico com ênfase no reconhecimento da propriedade privada. 

Apesar dos novos ares, não é sensato esperar mudanças que alterem a estrutura do sistema. O atual presidente, além de ter crescido na mesma base ideológica de seus antecessores, foi eleito pela Assembleia Nacional para dar continuidade ao projeto socialista. 

Referências

Bello, E., & Barbosa, M. L. A Constituição da República de Cuba de 2019: ampliação democrática e regulação econômica como desafios do tempo presente ao socialismo real. Revista De Estudos E Pesquisas Sobre As Américas, 13(3), 175-206. https://doi.org/10.21057/10.21057/repamv13n3.2019.27416

GUAZZELLI, Cesar. História contemporânea da América Latina, 1960-1990. Editora da Universidade, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1993.

LE RIVEREND, Julio. Breve história de Cuba. Editorial de Ciencias Sociales, 1999.

VAIL, John J.. Fidel. São Paulo: Nova Cultura, 1987.

Por Júlia Fialho e João Feres Junior

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