O Manchetômetro é um site de acompanhamento da cobertura da grande mídia sobre temas de economia e política produzido pelo Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública (LEMEP). O LEMEP tem registro no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e é sediado no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O Manchetômetro não tem filiação com partidos ou grupos econômicos.

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Prioridades que falam por si: enquadrando a violência à mulher no Jornal Nacional

Rio de Janeiro - A ONG Rio de Paz promove, na Praia de Copacabana, ato público contra o abuso sofrido pelas mulheres. Durante a manifestação, 420 calcinhas estendidas na areia, representam a quantidade de mulheres estupradas a cada 72 horas no Brasil. (Tânia Rêgo/Agência Brasil)
(Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Nascido[1] em pleno período de recrudescimento da ditadura militar no Brasil, o Jornal Nacional tenta passar, historicamente, uma imagem de neutralidade e transparência. Faz isso a partir de sucessivas declarações de comprometimento com a informação gerada ao público, nas quais destaca sua função de estabelecer a “cobertura das principais notícias no Brasil e no mundo. Pautado pela credibilidade, isenção e ética”[2]. Tendo em vista que as edições do JN têm menos de uma hora de duração, e que, portanto, a seleção de casos é algo inescapável, seria possível ainda assim manter qualquer tipo de isenção durante o processo de escolha das “principais notícias” do país? Quem participa desse processo? De qual ética estamos falando? Por exemplo, de que modo as mulheres, que são mais da metade da população do país, são contempladas nesta mídia?

Em geral, os grandes meios de comunicação não primam pela paridade de participação entre homens e mulheres. Segundo estudo realizado pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa em parceria com o Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública, ambos do IESP-UERJ, o gênero feminino não chega a 30% de participação entre os colunistas dos jornais O Globo, Folha de São Paulo e Estadão. Quando a variável raça é adicionada, as mulheres negras aparecem como o grupo menos contemplado nos espaços de opinião destes grandes jornais. No Jornal Nacional, as funções de maior notoriedade (editor-chefe/apresentador e diretor responsável) pertencem a homens, respectivamente, William Bonner e Ali Kamel. Do total da equipe, 61% são do gênero masculino e 39% são do gênero feminino[3]. Isso significa que as pautas apresentadas diariamente à população são formatadas prioritariamente por homens. As mulheres têm pouca possibilidade de expor suas experiências cotidianas. Ainda que a presença desse grupo não traga necessariamente pontos de vista diferenciados, sua ausência inibe qualquer chance de que isso ocorra.

O escopo habitual das “principais notícias” do país neste programa televisivo compreende, sobretudo, a política institucional e o cenário econômico. Há algum tempo, o Manchetômetro tem mostrado que isenção e ética são atributos raramente praticados pela cobertura do Jornal Nacional. A escolha dos temas mencionados, bem como a sua abordagem, varia significativamente de acordo com o partido político ou personagem noticiado.

Contudo, ao observarmos a cobertura das questões de gênero, esses dois problemas – seleção e abordagem – se manifestam de maneira específica. Destaca-se a escassa atenção dedicada ao tema da violência à mulher. Apesar da proliferação de novos veículos de comunicação que priorizam a denúncia do machismo, esse comportamento ainda não se reproduz nas mídias de maior audiência. Salvo algumas exceções, como o caso do estupro coletivo ocorrido recentemente no Rio de Janeiro[4], que alcançou grande notoriedade na mídia nacional de um modo geral, os relatos diários de violência e, especialmente, os inúmeros episódios de feminicídio que ocorrem em nosso país não conformam objeto relevante de análise aos olhos dos editores e redatores do JN. Tampouco quando as vítimas são mulheres negras, ainda que essas sejam as vítimas preferenciais desse tipo de crime.

Segundo o relatório da FLACSO, Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil [5], publicado ano passado, o número de mulheres negras assassinadas cresceu 54% de 2003 a 2013. Em um ranking com 83 países, baseado em dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil ocupa a quinta posição em taxa de homicídios de mulheres. Só no ano de 2013, por exemplo, em média 13 mulheres foram assassinadas por dia, sendo 50,3% desses crimes cometidos por familiares e 32,2% pelo parceiro atual ou ex.

Silenciando o Feminicídio

São Paulo 08/06/2016 2º ato Por Todas Elas na Avenida Paulista, contra o estupro. Foto Paulo Pinto/AGPT http://fotospublicas.com/ato-por-todas-elas-reune-mulheres-na-avenida-paulista-para-mais-um-protesto-contra-o-estupro/
(Foto: Paulo Pinto/AGPT)

Não bastassem as raras notícias dirigidas ao tema, quando elas ocorrem, há problemas de abordagem. No dia 15 de julho de 2016 o Jornal Nacional cobriu um suposto caso de assalto seguido de morte de uma mulher no Rio de Janeiro[6]. O sofrimento da filha e da família da vítima e a crueldade do crime foram aspectos centrais na narrativa da reportagem. Entretanto, no dia 18 de julho de 2016 a história sofreu uma reviravolta[7]. A Polícia Civil, a quem a reportagem dá voz, reformula o ocorrido em termos de violência perpetrada contra a mulher. O executor do crime, já com passagem na polícia, seria, na verdade, ex-companheiro da vítima, e teria cometido o assassinato por não se conformar com o término do relacionamento. A família, por sua vez, negou a versão da polícia e disse que a vítima só conhecia seu algoz por ele ser um trabalhador da região.

O fato da dona de casa Cristiane de Souza Andrade – a vítima — conhecer Rogelson Santos Batista – o responsável pelo crime — ganha protagonismo na notícia. Isso ocorre não só pela afirmação da polícia e a negação da família, mas também pela declaração do âncora William Bonner, que assume a postura de defender a atuação policial, utilizando a relação entre a vítima e o criminoso para atenuar qualquer possível responsabilização da polícia pela falha no provimento de segurança. Em 163 segundos de notícia, os 67 finais são reservados à opinião de Bonner, que afirma:

“Nesses dias em que tem aumentado o efetivo de segurança no Rio de Janeiro para a Olimpíada, a primeira suspeita de tentativa de roubo seguida de morte provocou imediatamente uma discussão sobre a necessidade de proteção que os cariocas têm o tempo todo, não só durante os jogos. Em todas as áreas da cidade, não só nos locais de prova. É uma discussão absolutamente legítima e necessária, mas com a identificação do criminoso, especificamente neste caso, não é justo ligar esses dois assuntos, porque o assassino, que apareceu nas imagens caminhando ao lado da vítima, era no mínimo conhecido dela e de vizinhos, e seria um desafio imenso pra (sic) polícia inibir uma ação covarde e rápida como essa, de uma pessoa de quem ninguém pudesse suspeitar. Infelizmente nunca se saberá se Rogelson teria feito o que fez se houvesse mais policiamento por perto e se tivesse sido punido exemplarmente na primeira vez em que sacou uma faca pra ameaçar uma mulher”.

É mais do que escancarada a ausência de neutralidade na descrição do ocorrido. Alguns pontos na fala do apresentador do Jornal Nacional saltam à vista: a despeito da atenção concedida à relação da vítima com o agressor, em momento algum fala-se sobre feminicídio. O debate suscitado pela ocorrência do crime fica restrito, no enquadramento dado pelo jornalista, à discussão da segurança dos “cariocas”. Sancionada ano passado pela então presidenta Dilma Rousseff, a lei do feminicídio institui punições mais severas a crimes baseados na condição de mulher e à violência doméstica[8].

Ao editorializar a notícia dando sua própria versão do fato para o telespectador, coisa que raramente acontece, Bonner tem como principal objetivo a defesa da atuação da polícia do Rio de Janeiro, a mais letal do país[9]. Ademais, ele deixa de mencionar a lei federal, mas apresenta a punição como solução preventiva (“se tivesse sido punido exemplarmente”), sem qualquer problematização mais aprofundada acerca da natureza da violência em nossa sociedade.

Em suma, ao passo que escondeu a natureza de gênero da violência ocorrida, protegendo, ao mesmo tempo, a Polícia Carioca de eventuais críticas, o Jornal Nacional, na voz de seu dileto âncora, passou uma concepção law and order de justiça e segurança pública: quanto mais rápida e exemplar vier a punição, melhor! E assim, a grande mídia brasileira educa sua audiência para a cidadania.

[1] O primeiro episódio do Jornal Nacional foi ao ar em setembro de 1969. Disponível em: http://memoriaglobo.globo.com/programas/jornalismo/telejornais/jornal-nacional/evolucao.htm

[2] Disponível em: http://memoriaglobo.globo.com/programas/jornalismo/telejornais/jornal-nacional/formato.htm

[3] Percentual calculado com base nas informações disponíveis em: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2010/04/redacao.html

[4] Por exemplo: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2016/06/policia-do-rio-indicia-7-por-estupro-coletivo-de-jovem-de-16-anos.html

[5] Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil. Flacso, 2015. Disponível em: http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf

[6] Mulher morre a facadas em um assalto na Zona Norte do Rio, 15 de julho de 2016. Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/5167909/

[7] Dona de casa esfaqueada no Rio conhecia assassino, diz polícia, 18 de julho de 2016. Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/5173017/

[8] Lei do Feminicídio (Lei nº 11.340/06). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/lei/L13104.htm

[9] Rio de Janeiro tem a polícia mais letal do país, Uol, 2015. http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/12/01/rio-de-janeiro-tem-policia-mais-letal-do-pais.htm

Por Marcia Rangel Candido, João Feres Júnior e Luna Sassara

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