A Folha e seus neologismos históricos: da “ditabranda ao “Jair Rousseff”
No já longínquo 17 de fevereiro de 2009, um aparentemente despretensioso editorial da Folha de S. Paulo que fazia crítica ao então presidente venezuelano Hugo Chávez foi responsável pela reatualização de um debate já bastante silenciado nas páginas da imprensa brasileira. O texto procurou estabelecer um paralelo entre o “rolo compressor do bonapartismo chavista”, capaz de destruir os pilares e minar as instituições de controle democrático por dentro, e as chamadas “ditabrandas” – caso do regime que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985 – e que, segundo o jornal, partiu de uma ruptura institucional, preservando ou instituindo “formas controladas de disputa política e acesso à Justiça.”[1]
O chamado caso da “ditabranda” acabou por gerar uma das maiores crises de credibilidade da história do jornal, que recebeu duras críticas de seus leitores, assinantes e opositores, como as do professor da USP, Fábio Konder Comparato, que enviou carta à redação da Folha instando o autor do editorial a “ficar de joelhos em praça pública e pedir perdão ao povo brasileiro.” O jornal respondeu duramente à crítica, afirmando que a “indignação” de Comparato seria “cínica e mentirosa”[2]. Foi somente algumas semanas depois, devido às repercussões do caso, que a Folha se retratou com breve nota. Otávio Frias Filho, então diretor de redação do jornal, desculpou-se pelo erro e a “conotação leviana” do termo utilizado, que não se prestava à gravidade do assunto: “Todas as ditaduras são igualmente abomináveis.”[3]
Retomamos a este “incidente” para pensar as implicações da mais recente comparação realizada pelo jornal, desta vez entre o governo de Jair Bolsonaro e Dilma Rousseff. Em editorial publicado no dia 21 de agosto de 2020, a Folha procurou estabelecer uma descontextualizada ligação entre as políticas de gastos públicos realizadas por ambos, aproximando suas imagens a partir de uma falsa similaridade capaz de negligenciar, inclusive, o caráter autoritário do atual presidente. Para o jornal, não havia diferença significativa entre as políticas econômicas das duas gestões. Criou assim uma expressão bastante peculiar para dar nome ao seu texto: “Jair Rousseff”. [4]
O editorial gerou imediatamente uma ampla e negativa repercussão, a começar pela própria ex-presidente Dilma, que escreveu uma carta aberta em repúdio ao posicionamento do jornal. Publicada no dia seguinte pela Folha, a carta afirmava que o editorial do jornal se baseara em uma “junção grosseira e falsificada” realizada para “forçar uma simetria que não existe”. Pior que erro, afirmava, o texto era deliberado ato de má fé de uma empresa que teria dificuldade enorme em avaliar seu passado e, consequentemente, analisar o presente. Foi o que ocorreu, relembra Dilma, quando o jornal cometeu a “pusilanimidade” de chamar o regime militar brasileiro de “ditabranda”, bem como quando publicou em destaque na primeira página uma ficha – comprovadamente forjada – da ainda ministra da Casa Civil encarcerada no DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), sendo acusada de praticar “terrorismo” durante a ditadura. Atos como estes, concluía a carta, eram “eticamente indefensáveis”: “Quem acredita que as redes sociais inventaram as fake news desconhece o que foi feito pela grande imprensa no Brasil – a Folha inclusive.”[5]
Logo em seguida foi a vez da ombudsman do jornal, Flavia Lima, comentar o “circo de horrores” praticado pela Folha, que deveria ter tratado um tema desta relevância com mais seriedade. O que fizera o jornal, de acordo com ela, foi “lançar mão de um artifício infantil” na tentativa de assemelhar Bolsonaro, um declarado apologista da ditadura e de seus torturadores, à Dilma, ex-militante política, presa e severamente torturada pelo regime.[6] Por sua vez, Janio de Freitas, veterano jornalista da empresa, afirmou que o editorial “Jair Rousseff” trouxe à tona novamente o “tratamento de ‘ditabranda’” entre o jornal e seus críticos, já que instaurou uma nova crise de credibilidade à imagem da Folha , revisitando o “equívoco traumatizante” gerado pelo caso há mais de uma década. Os motivos de tamanho deslize podem estar no aprofundamento, “no pior rumo”, ressaltava o jornalista, “da queda de asa para a direita” introduzida ainda por seu ex-chefe, Otavio Frias Filho: “Se a Folha não esclarecer, o tempo, e não muito, o fará.”[7]
Estas críticas, estampadas pela própria Folha para respaldar seu caráter de jornalismo plural e aberto ao contraditório, não foram, no entanto, bem recebidas pelo atual diretor de redação da empresa, Sérgio Dávila. No dia 30 de agosto, como que na tentativa de encerrar uma discussão, publicou texto autoral no qual afirmava que o título do editorial “Jair Rousseff” mereceu os devidos questionamentos, pois fora uma “escolha infeliz” do jornal. Dávila também rebateu “acusações infundadas” e algumas “injustiças” cometidas pela coluna de Janio de Freitas, principalmente as que se referiam à atuação da empresa durante a ditadura militar.[8] Por fim, criticou Freitas por ter “ressuscitado” o episódio da “ditabranda”, um caso aparentemente já superado pelo jornal.
Um embate nestes termos, – capaz de reviver histórias silenciadas, ainda mal explicadas –, parece ter surgido em um momento não muito oportuno para a empresa. Isso porque a Folha, desde junho de 2020, vem produzindo uma ampla campanha “em defesa da democracia” na qual, paralelamente, procura explicar a seus leitores “o que foi” de fato o período da ditadura militar.[9] Os discursos produzidos pelo jornal ao longo da campanha, com a produção de uma série de matérias especiais, cursos, vídeo-aulas, lives e podcast, reforçam aquilo que definimos anteriormente como “clichês historiográficos de autolegitimação”[10], narrativas-chave construídas pela empresa na tentativa de funcionarem como “álibis” sobre sua atuação no período, a saber: a de que foram resistentes, quando não vítimas da ditadura, sobrevivendo a um período obscuro e truculento, no qual não era possível expressar orientações políticas bem definidas, uma vez que todos foram censurados, restando ao jornal apenas silenciar e acatar as imposições advindas do regime. São narrativas que, portanto, reenquadram não apenas os acontecimentos referentes ao período da ditadura sob um viés bem específico, – silenciando o protagonismo exercido pela imprensa na legitimação do golpe e da ditadura que se seguiu –, mas também e, acima de tudo, reconstroem a própria história do jornal no contexto dos chamados anos “de chumbo”.
Além disso, o fundamental aqui é perceber que, ao assumir certa autoridade para ensinar “o que foi” a ditadura, a Folha procura se circunscrever como um agente capaz, reconhecido e legítimo para construir uma narrativa particular, como se esta fosse “a verdadeira” história do período. É o que tem feito, por exemplo, quando pautas relativas ao acontecimento, cada vez mais presentes, tomam conta do noticiário. Recentemente, na última efeméride do 7 de setembro, Jair Bolsonaro proferiu um discurso em cadeia nacional no qual paradoxalmente defendeu a democracia e, ao mesmo tempo, exaltou o golpe de 1964 e o período da ditadura militar. Ao noticiar o caso[11], a Folha relacionou diretamente a fala do presidente aos conteúdos especiais produzidos sobre o período, linkando a matéria diretamente à página, como que indicando aos leitores: para saber mais sobre “o que foi a ditadura”, consulte exclusivamente nosso material. Aqui quem fala é obviamente a Folha de 2020. Um jornal “em defesa da democracia”, crítico aos tempos sombrios e truculentos da ditadura, onde “brando” fora apenas seu papel naquele passado, visto já como página virada e devidamente apaziguada.
[1] LIMITES A CHÁVEZ. Folha de S. Paulo, ano 88. nº 29.175, p. A2, 17 de fevereiro de 2009.
[2] Painel do Leitor. Folha de S. Paulo, ano 88. nº 29.178, p. A3, 20 de fevereiro de 2009
[3] FOLHA avalia que errou, mas reitera críticas. Folha de S. Paulo. ano 88. nº 29.194, p. A6, 08 de março de 2009
[4] Jair Rousseff. Folha de S. Paulo, 21 de agosto de 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/08/jair-rousseff.shtml Acesso em 10 de setembro de 2020.
[5] ROUSSEFF, Dilma. “A FALHA DE S.PAULO” ATACA OUTRA VEZ? In: Teto de gastos é atentado contra povo brasileiro, escreve Dilma. Folha de S. Paulo, 22 de agosto de 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/08/teto-de-gastos-e-atentado-contra-povo-brasileiro-escreve-dilma.shtml Acesso em: 10 de setembro de 2020.
[6] LIMA, Flavia. Circo de Horrores. Folha de S. Paulo, 23 de agosto de 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/flavia-lima-ombudsman/2020/08/circo-de-horrores.shtml Acesso em: 10 de setembro de 2020.
[7] FREITAS, Janio. A Folha no Erramos; editorial ‘Jair Rousseff’ trouxe de volta o tratamento de ‘ditabranda’. Folha de S. Paulo, 29 de agosto de 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/janiodefreitas/2020/08/a-folha-no-erramos-editorial-jair-rousseff-trouxe-de-volta-o-tratamento-de-ditabranda.shtml Acesso em: 10 de setembro de 2020.
[8] DÁVILA, Sérgio. Uma escolha infeliz. Folha de S. Paulo, 30 de agosto de 2020. Disponível em: www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/08/uma-escolha-infeliz.shtml Acesso em: 10 de setembro de 2020.
[9] O Que foi a ditadura. Folha de S. Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/o-que-foi-a-ditadura/ Acesso em: 11 de setembro de 2020.
[10] DIAS, André Bonsanto. A verdade dita é dura: “Histórias da verdade” do/no jornalismo e a ditadura militar no Brasil. Tese (Doutorado em Comunicação) – Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2018.
[11] MACHADO, Renato; CARVALHO, Daniel. Em pronunciamento na TV, Bolsonaro diz defender democracia, mas volta a celebrar golpe de 1964. Folha de S. Paulo, 7 de setembro de 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/09/em-pronunciamento-na-tv-bolsonaro-diz-defender-democracia-mas-celebra-golpe-de-1964.shtml Acesso em 11 de setembro de 2020.