Democracia a salvo, mas não pelo presidente ideal
O acompanhamento diário da grande imprensa possibilita ao Manchetômetro identificar tendências e perfis da cobertura jornalística. Os editoriais, por exemplo, são dedicados a promover ou rechaçar agendas políticas e pautas econômicas. No contexto das eleições presidenciais, essa proatividade política dos editoriais fica ainda mais saliente, em um esforço de seus redatores para influenciar o processo de formação de opinião eleitoral. Afinal, a mídia possui algum posicionamento político ou apoia candidatos à Presidência?
Durante o primeiro turno de 2018, os jornais apostaram as fichas no chamado “centro democrático”, que reunia nomes como Marina Silva, Geraldo Alckmin, João Amoedo, Henrique Meirelles entre outros. Já no segundo turno, os editoriais passaram a mitigar a imagem mais negativa, que haviam construído, de Jair Bolsonaro. De radical e extremista, como foi apresentado no primeiro turno, ele passou a ser um candidato arrependido das declarações sobre tortura e apoio à ditadura militar, segundo editorial de O Globo, que também asseverava que sua chegada ao Palácio do Planalto tornaria a representatividade na política brasileira mais realista. Se durante a reta final do pleito a narrativa era de ressalvas, após a vitória de Bolsonaro os jornais, especialmente O Globo e Estado de S. Paulo, optaram pelo elogio. Ambos interpretaram a vitória como uma conquista da democracia brasileira, ao passo que relativizaram o aumento da presença de militares no governo, bem como suas falas polêmicas.
Quatro anos depois, em 2022, Bolsonaro enfrentou novamente o Partido dos Trabalhadores no segundo turno, agora contra Lula. O petista venceu o pleito e resta verificar como o presidente eleito foi recepcionado pelos editoriais. Para responder a esta questão, apresentamos a seguir análise dos editoriais publicados na semana seguinte ao resultado das eleições, ou seja, entre os dias 31 de outubro e 6 de novembro, na Folha de São Paulo, O Globo e Estado de São Paulo.
Folha de S. Paulo
A Folha de S. Paulo publica o primeiro editorial após o segundo turno louvando a solidez da democracia brasileira em virtude da alternância de poder. A terceira vitória de Lula é retratada pelo jornal como uma junção entre o legado lulista e a rejeição a Bolsonaro. Além da descrição conjuntural amplamente conhecida e os desafios para os próximos anos, salta aos olhos um dos requisitos listados pelo editorialista para o sucesso do novo governo petista: “disposição de rumar ao centro, política e economicamente”. Em novembro de 2020, no editorial “Os centros se movem” a Folha havia manifestado o interesse de que “Bolsonaro e a esquerda” perdessem as eleições em 2022. Com o fracasso da terceira via e a falência eleitoral do PSDB, o jornal retoma a tarefa de movimentar os personagens políticos de acordo com aquilo que denomina “centro”. Estiveram presentes na primeira semana de cobertura editorial questões como o impacto de uma composição congressual oposicionista, o elogio ao processo de transição gerido por Alckmin e o novo rumo na agenda climática. Entretanto, o maior destaque foi para a pauta econômica. A Folha reforçou em seus editoriais a necessidade de adoção de um projeto econômico fiscalista, sob a justificativa que somente este caminho reduziria a pobreza, pauta tradicional petista, e garantiria verba para educação e saúde.
Estado de S. Paulo
Conflituoso, desumano e assustadoramente destrutivo é como o jornal O Estado de S. Paulo definiu Bolsonaro em seu editorial do dia 31 de outubro, afirmando que ele não soube nem mesmo se portar como presidente da República. Entretanto, Lula é também alvo de pesadas críticas. Embora ressalte que ele seria a única opção democrática entre os dois candidatos, o editorialista do Estadão chama o petista de grande artífice da crise política, social e moral do país. Lula também é acusado de não definir seu plano de governo. Já Bolsonaro é criticado por desqualificar a imprensa profissional e independente, as instituições republicanas e o sistema eleitoral.
O jornal aponta com satisfação o direcionamento do presidente eleito ao centro, ao ter Simone Tebet e Alckmin como aliados e destaca que ele deve lidar com a dura realidade econômica e social. Bolsonaro é criticado por não aceitar sua derrota e por apoiar as manifestações antidemocráticas, entretanto, o texto afirma que a volta de Lula é uma retomada à política tradicional, com alianças políticas e negociações, mas o editorialista do jornal critica a “má fé” do petista em seus governos anteriores.
À imagem e semelhança da Folha, os editoriais do Estadão manifestam preocupação acerca de como Lula lidará com as contas públicas, afirmando ser impossível que o petista cumpra suas promessas de campanha como a manutenção do valor atual do Auxílio Brasil e o reajuste para os servidores. Em suma, a preocupação maior recai sobre a questão fiscal e o teto de gastos.
O Globo
Em seus editoriais pós-eleição, O Globo ressalta que Bolsonaro flertou com o golpismo e que pela primeira vez desde a redemocratização seria necessário exigir respeito ao resultado eleitoral. São muitas as críticas ao governo do ex-capitão, pela desaceleração na economia e a “devastação do Orçamento… mascarada pela arrecadação”. Mas a conclusão é que isso deixaria “ao eleito a obrigação de resgatar a credibilidade fiscal”. O jornal critica a dificuldade de Bolsonaro em reconhecer sua derrota e em se pronunciar, além do caráter golpista dos atos pró-Bolsonaro. Entretanto, enfatiza a necessidade do diálogo da equipe de transição.
Assim como nos outros dois jornais, os editoriais do jornal carioca ao falarem de Lula, insistem na tecla do fiscalismo. Criticam as mudanças propostas pelo presidente eleito, particularmente aquelas relativas à reforma da previdência e asseveram que a equipe econômica do PT não entende os desafios do Brasil, estando disposta a endividar mais ainda o país para promover suas pautas sociais. Isto é, se por um lado os editoriais criticam Bolsonaro pelo desmonte da máquina pública, dos órgãos ambientais à vacinação, das universidades à cultura, por outro apontam que o novo presidente não estaria no caminho certo ao propor uma “gastança desenfreada” para atender os grupos de pressão.
Conclusão
Apesar da vitória de Lula representar a possibilidade de normalização democrática, os editoriais demonstraram insegurança a respeito dos rumos econômicos do próximo governo, questão central para a grande imprensa. Os três jornais rejeitam as atitudes antidemocráticas de Bolsonaro, mas, ao mesmo tempo, querem constranger o governo que em breve se iniciará a adotar um perfil fiscalista, no que chamam de guinada ao “centro”, movimento esse que contraria a agenda social que elegeu o próprio Lula e que é a marca do PT. Nos editoriais essa agenda sempre aparece condicionada à manutenção da austeridade fiscal.
A busca de um governo de “centro” pelos grandes jornais brasileiros já foi percebida em outras análises feitas pelo Manchetômetro. A falta de clareza no emprego das categorias do espectro ideológico (centro, esquerda e direita) e a aplicação dessas categorias aos partidos e personagens da política varia de acordo com o contexto e os interesses dos editores em organizar e influenciar o processo político. Nem Bolsonaro em 2018 nem Lula em 2022 eram os presidentes ideais para a grande imprensa, mas o ex-capitão, acompanhado por Paulo Guedes e pelo mercado, foi recepcionado de maneira mais esperançosa que o petista.