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A Cigarra e a formiga

Como toda boa estória infantil, a velha fábula da Cigarra e da formiga, de Esopo (recontada por La Fontaine), tem um conteúdo moral que permanece no inconsciente. O consumo é visto com uma carga moral negativa. Nas interpretações sobre o processo de desenvolvimento capitalista, em geral, ele tem um papel no máximo tolerado, mas normalmente deplorado. Não se pretende aqui adentrar no pantanoso terreno das motivações psicossociais dos méritos morais da abstinência, moderação em relação ao hedonismo, tão caras a abordagens econômicas de caráter subjetivista e individualista. Pretendo me deter simplesmente na questão macroeconômica, ainda que haja muito a se dizer sobre a forte relação ideológica entre esse julgamento moral e certas prescrições conservadoras de política econômica.

No terreno da ciência econômica, a discussão teórica do sentido de causalidade das três variáveis – consumo, poupança e investimento – é central para diferenciar as distintas abordagens macroeconômicas. Não caberia no escopo desse artigo o aprofundamento dessa questão, mas é importante anotar que seus ecos, que implicam em decisões de política econômica fundamentais para a vida da população de um país, principalmente os de poder aquisitivo mais baixo, já foram escutados em outra época no Brasil. Durante a ditadura militar ficou famosa a frase delfiniana de que seria “necessário deixar o bolo crescer para depois dividi-lo”. Nessa época o salário dos trabalhadores era utilizado, pela política de estabilização do governo militar como variável de ajuste, ou seja: continham-se os reajustes nominais dos salários para segurar a inflação com impacto negativo sobre o salário real.

A volta da democracia ocorreu em um período de terrível restrição externa, que teve como consequência a hiperinflação e o baixo crescimento. As políticas neoliberais combinadas, inicialmente, às crises da Ásia e Rússia dos anos que se seguiram à estabilização da economia, garantiram uma limitada recuperação salarial, e não geraram um crescimento sustentado do consumo e nem da renda.

Finalmente o ciclo virtuoso que se registra a partir de 2004 até 2010, permitiram a elevação do salário dos trabalhadores e especialmente o salário mínimo, objeto da mais importante política distributiva do governo Lula.

Quarenta anos depois finalmente parecia que o país trilharia um padrão de crescimento mais inclusivo. Nem todo mundo concordou, contudo. Ou concorda. O velho “bolo” da ditadura militar voltou, ainda que desprovido da metáfora culinária. Agora teríamos um “inviável modelo de crescimento puxado pelo consumo”.

O problema é que o bolo voltou não apenas solado pelos velhos motivos teóricos e ideológicos. Seus ingredientes estão errados. Troca sal por açúcar, fermento por soda cáustica. No período virtuoso de crescimento, entre 2005 e 2010, enquanto o crescimento do consumo foi de 37,7%, o do investimento agregado foi de 73,2%. Praticamente o dobro. Mas as surpresas não param por aí. O investimento agregado se compõe de compra de máquinas e construção de estruturas produtivas e residenciais. Para se ter uma ideia da importância desse último componente, desde 1929 até os dias de hoje na economia norte americana, a construção residencial representou aproximadamente 25% do investimento total.

E aí que reside, sem trocadilho, o problema no Brasil. Essa taxa elevada de crescimento do investimento brasileiro se deu a despeito de um desempenho relativamente medíocre da construção residencial. Basta dizer que entre 2004 e 2010, justamente o período do ciclo expansivo virtuoso citado anteriormente, a acumulação de capital produtivo cresceu cerca de 80% enquanto a construção civil menos de 30%. Se o leitor permite mais uma estatística, no período de 2005 a 2008, ou seja, eliminado o efeito da crise internacional, enquanto o investimento em máquinas da indústria cresceu a uma taxa média anual superior a 15%, a construção residencial se elevou ao ano a taxa anual média muito inferior, 2,7%.

Alguém poderia argumentar: mas o investimento não despencou recentemente?

Sim, mas o consumo também. A taxa média, a cada quatro trimestres em base móvel, do crescimento do consumo privado entre o último trimestre e 2004 e do malfadado primeiro trimestre de 2011, quando o governo resolveu puxar o freio da economia, era de cerca de 4,4%. De lá pra cá caiu à metade desse valor! Em outros termos: por que estariam os empresários aumentando fortemente seu investimento se o consumo doméstico despenca? Para quem venderiam seus produtos? Pra piorar: a economia mundial também não apresenta recentemente um cenário dos mais estimulantes. O comportamento dos empresários não só é racional como tem até um nome na teoria econômica: acelerador do investimento. Este opera nas duas direções: quando a economia como um todo cresce, acelera o investimento, e quando a economia desaquece derruba de forma ainda mais intensa o investimento. No ciclo recente, o Brasil não é nem de longe a jabuticaba.

A contradição tão flagrante entre dados e interpretação só pode ser reflexo de um forte viés ideológico, ou talvez excesso de La Fontaine na tenra infância. Mas seja qual a origem, resultam em desastre na política econômica. O consumo terá de crescer a taxas maiores frente às registradas recentemente, para que a economia saia de sua atual estagnação — aí incluindo a expansão do crédito ao consumo, que parece carregar uma carga moral ainda mais nefanda que o consumo por expansão de salários. Também há que se acelerar a expansão da construção civil, de resto mais que necessária num país com elevado déficit habitacional. Certamente, dado o baixo nível de renda média do país, programas oficiais, como o Minha Casa Minha Vida, terão papel a desempenhar muito importante. Quanto ao investimento privado em capacidade produtiva, talvez a metáfora cinematográfica mais adequada não seja a “fada Sininho da confiança” que teria faltado, mas que de fato não faltou, aos nossos empresários. Como confirma a longa história do capitalismo, incluindo o recente ciclo expansivo brasileiro, a metáfora correta é o filme Campo dos Sonhos. O investimento em capacidade produtiva virá sem que para isso as camadas menos favorecidas da população tenham que esperar outros 40 anos e não sei lá quantos milagres.

Por Carlos Pinkusfeld

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