Lula e a ONU: o que (não) disse a imprensa brasileira?
No dia 17 de agosto, o Comitê de Direitos Humanos da ONU emitiu um documento solicitando que o Brasil tome as medidas necessárias para garantir ao ex-presidente Lula o exercício de direitos políticos enquanto estiver na prisão como candidato às eleições presidenciais deste ano. A decisão inclui o acesso apropriado à imprensa e aos membros de seu partido político.
O Comitê de Direitos Humanos da ONU é um órgão integrado por especialistas independentes dos Estados-Parte das Nações Unidas e seu principal objetivo é controlar a aplicação dos dispositivos previstos no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966) e no Protocolo Adicional com vista à Abolição da Pena de Morte (1990). Em julho de 1992, sob a presidência de Fernando Collor, o Brasil ratificou o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos através do Decreto Nº 592. Com essa ação, se comprometeu a executar e cumprir o Pacto “tão inteiramente como nele se contém”[1] – incluído o reconhecimento do referido Comitê de Direitos Humanos e, consequentemente, suas recomendações.
Com o Decreto Nº 311/2009[2] o governo brasileiro aprovou o texto do Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado em Nova Iorque, em 16 de dezembro de 1966, e do Segundo Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos com vistas à Abolição da Pena de Morte. Tais protocolos funcionam como uma espécie de emenda ao Pacto original e, uma vez que o país assina o acordo, o cumprimento das recomendações, objetivos e atribuições faz-se necessário.
No episódio recente, que envolve o comunicado emitido em 17 de agosto, o Comitê de Direitos Humanos alertou para possíveis danos irreparáveis aos direitos políticos de Lula da Silva. Fica expresso no documento que a decisão tomada pelo Comitê não tem relação com o conteúdo do processo legal que envolve o ex-presidente, sendo apenas uma indicação de possível violação do artigo 25 do Pacto Internacional que versa sobre os direitos de todo cidadão de votar e ser eleito em eleições periódicas. O Comitê recomenda inclusive que os direitos políticos de Lula da Silva devam ser assegurados até o esgotamento de todos os recursos legais previstos.
Dada a importância da Organização das Nações Unidas (ONU) no contexto regional e global e sequência de polêmicas envolvendo a candidatura de Lula da Silva para as eleições de 2018, este ensaio analisa o posicionamento da grande mídia brasileira – aqui representada pelos jornais Folha de São Paulo, Estadão e o Globo – em relação à decisão do Comitê de Direitos Humanos no período entre 17 e 24 de agosto.
A tabela abaixo mostra a distribuição dos textos sobre o tema publicados nos grandes jornais ao longo do período analisado.
Mesmo se tratando de uma notícia diretamente relacionada ao contexto eleitoral, percebemos que a distribuição foi pouco expressiva, sendo Folha de São Paulo e Estadão os veículos que mais agendaram o assunto. Entretanto, apesar do número de publicações, o espaço real atribuído à declaração do Comitê foi pouco significativo. A Tabela 2 mostra que as menções ao tema se concentraram nos chamados “Drops” (pequenas notas assinadas por colunistas).
Em relação ao conteúdo das publicações, temos a repetição de um padrão observado pelo Manchetômetro em suas últimas publicações: o silenciamento de fatos políticos envolvendo o ex-presidente Lula que fogem da díade corrupção-prisão. Como esperado, os jornais brasileiros fazem pouco caso da decisão do Comitê omitindo de suas páginas referências consistentes ao episódio. Portanto, a cobertura do tema teve dois momentos: o silenciamento, e o posicionamento contrário — com raras exceções — examinadas adiante. Como podemos ver a cobertura do tema pela grande mídia esteve bem abaixo do esperado por se tratar de uma decisão que remete a um órgão internacional e ao candidato à presidência da República líder de intenção de voto.
A publicação de opiniões na forma de pequenas reportagens e colunas e também nos chamados “Drops” revela o intuito de contornar a evidente negligência observada nos dois primeiros dias posteriores à decisão do Comitê. Mesmo assim, as informações foram dadas de forma dispersa e desencontrada. No conjunto de dados analisados vemos que os jornais brasileiros não se preocupam em elucidar o papel do Comitê de Direitos Humanos, fazendo em alguns casos confusão com o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.
Os esforços para o esvaziamento do conteúdo da ação também foi um pilar da estratégia utilizada pelos jornais. Nesse aspecto, a ênfase na não vinculação jurídica do documento elaborado pelo Comitê contribuiu para uma leitura que minimiza o peso político e institucional da entidade. A opinião veiculada nos textos foi frequentemente ancorada em declarações “oficiais” emitidas por setores do governo – incluindo o Ministério de Relações Exteriores – e membros do Judiciário, como a Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, o ex-Ministro da Justiça, Alexandre de Moraes e o Ministro do Superior Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso.
Entre os dias 17 e 19, as menções ao caso foram limitadas a comentários pontuais, sem profundidade ou destaque. Vale frisar que as publicações negativas, principalmente no jornal O Globo, fizeram uso de um argumento peculiar. Dado que durante seus governos, Lula e Dilma adotaram uma política não-intervencionista em relação à questão dos direitos humanos em Cuba, o PT agora não poderia apelar para ONU no caso da cassação dos direitos políticos de Lula. É como se, por exemplo, o fato de uma pessoa ser anarquista fosse razão para lhe negar o direito de ser eleita ou de ter cargo público, ou seja, como se uma posição política pudesse ser usada como justificativa para a suspensão de direitos.
No período entre 20 e 24 de agosto, os veículos publicaram reportagens, artigos de opinião e editoriais mais contundentes. Destaque para o artigo publicado na Folha de São Paulo no dia 21 de agosto, assinado pelo ex-Ministro de Relações Exteriores do governo Lula, Celso Amorim. Com o título Eleição sem Lula é fraude[1], o ex-chanceler citou um encontro com o Papa Francisco, defendeu a aplicabilidade da declaração internacional e chamou a atenção do significado da não-aplicabilidade do termo. Três dias depois, a Folha publicou um novo artigo, desta vez assinado por Celso Lafer[2] (ex-chanceler do governo de Fernando Henrique Cardoso), contrariando a posição defendida por Amorim anteriormente.
Outro ponto que merece destaque é o contraste entre o Comitê de Direitos Humanos e os membros do judiciário brasileiro. No conjunto dos textos publicados sobre o tema, a valência atribuída ao desempenho do judiciário é majoritariamente favorável quando comparada a do Comitê internacional.
Mesmo sendo composto por 18 especialistas de reconhecimento internacional, o Comitê parece aos olhos dos jornais não ter competência para analisar o caso.
Outra estratégia comum das matérias é utilizar as opiniões emitidas por Raquel Dodge (PGR), Luis Roberto Barroso (STF) e Alexandre de Moraes para relativizar ou mesmo desqualificar a decisão do Comitê de Direitos Humanos, sempre em favor da condenação de Lula e de sua possível inegibilidade.
CONCLUSÃO
O caso em questão é mais um exemplo do profundo viés que marca a cobertura jornalística da política em nosso país. Para além dos dados quantitativos de valência, que notamos diariamente ao examinar as páginas do Manchetrômetro, identificamos esse viés na estratégia usada nos textos jornalísticos no tratamento dos atores e instituições internacionais envolvidas no caso do ex-presidente Lula da Silva. Tal estratégia pode ser sintetizada pela fórmula omissão/destaque por conveniência. Quando os atores reforçam o discurso adotado pela mídia suas opiniões são expressas nas páginas dos jornais, caso contrário amargam o isolamento e o descrédito. Notícias envolvendo o Papa Francisco são um exemplo, visto o episódio do terço que chegou ao ex-presidente Lula e a baixa repercussão da homilia que colocava a mídia como fomentadora de golpes de estado. O caso da recomendação do Comitê de Direitos Humanos da ONU confirma essa tese, como mostramos acima.
Poderíamos conjecturar que todos os meios de comunicação praticam alguma forma da estratégia de omissão/destaque por conveniência. Contudo, no caso da grande mídia brasileira, a adoção de tal estratégia é tão intensa a ponto de sacrificar a pluralidade de opiniões e ideias sobre temas fundamentais para a vida pública de nosso país, como é o caso dos direitos humanos e políticos de Lula. Se em períodos não eleitorais tal prática constitui manipulação da opinião pública, quando das eleições, como agora, ela se torna algo mais: tentativa de influenciar o resultado das urnas.
[1] Eleição sem Lula é fraude? Artigo de Opinião, Folha de São Paulo, p.A3, 21 de agosto de 2018.
[2] A Manifestação do Comitê de Direitos Humanos da ONU. Artigo de Opinião, Folha de São Paulo, p.A3, 24 de agosto de 2018.
[1] Decreto Nº 592, 6 de Julho de 1992. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm
[2] Decreto Legislativo Nº 311 de 2009. Disponível em <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decleg/2009/decretolegislativo-311-16-junho-2009-588912-publicacaooriginal-113605-pl.html>