O Manchetômetro é um site de acompanhamento da cobertura da grande mídia sobre temas de economia e política produzido pelo Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública (LEMEP). O LEMEP tem registro no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e é sediado no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O Manchetômetro não tem filiação com partidos ou grupos econômicos.

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Eleições na Argentina: o que diz a mídia brasileira?

Marcelo Camargo/Agência Brasil
O presidente Jair Bolsonaro recebe o presidente da Argentina, Mauricio Macri, para almoço no Palácio do Itamaraty.

A chapa encabeçada por Alberto Fernández e que tem como vice, para a disputa presidencial, a ex-presidente e senadora Cristina Kirchner saiu vitoriosa nas eleições primárias realizadas no último domingo (11/8) na Argentina. A Frente de Todos obteve 47% dos votos, enquanto a Juntos para el Cambio, do atual presidente Maurício Macri, alcançou 32%. O processo, conhecido pela sigla PASO (Primárias, Abertas, Simultâneas e Obrigatórias), é a primeira etapa das eleições. A segunda ocorre em outubro deste ano. O resultado, visto como inesperado por parte da imprensa brasileira, provocou uma série de reações: na segunda-feira (12/8), Macri fez um pronunciamento culpando a oposição pelas instabilidades no mercado financeiro; no Brasil, a mídia reagiu negativamente ao que considerou um possível “retorno do populismo”; o presidente Jair Bolsonaro também se pronunciou criticando o que chamou de “esquerdalha”. Nosso objetivo aqui é mostrar como a imprensa brasileira enquadrou o resultado das prévias argentinas. Para isso, analisamos os editoriais e a cobertura realizada pelos jornais Folha de São Paulo, Estado de São Paulo e O Globo nos dias 12 e 13 de agosto.

COBERTURA

No dia 12 de agosto, os jornais apresentaram o resultado das primárias como um fato “surpreendente”. A Folha de S. Paulo[1] justificou a surpresa a partir de “pesquisas internas” que mostravam uma disputa acirrada – com uma diferença de dois a quatro pontos percentuais entre as chapas concorrentes. O resultado final, com quinze pontos de diferença entre Fernández e Macri, não só “surpreendeu” os jornais como também abalou a confiança do atual presidente argentino, que assumiu a derrota durante a apuração dos votos. Para O Estado de S. Paulo[2] e O Globo,[3] a vitória de Alberto Fernández e Cristina Kirchner tornaria “quase impossível” a reeleição de Maurício Macri em outubro. Uma possível vitória macrista, segundo os jornais, dependeria da recuperação da economia argentina. Na coluna de Nelson de Sá[4], uma nota sugeriu, fazendo referência ao jornal Financial Times, que uma possível vitória kirchnerista seria um freio ao combate à corrupção na Argentina.

A cobertura do dia 13 de outubro focou na influência das primárias sobre o mercado financeiro e nas declarações de Jair Bolsonaro sobre a disputa argentina. Os três jornais fizeram associações entre os resultados de domingo e a instabilidade do mercado financeiro em suas capas. O Estado de S. Paulo estampou o título “Medo de populismo na Argentina derruba bolsas”; a Folha de S. Paulo, com menos alarde, optou pelo título “Crise argentina gera tensão e afeta indicadores no Brasil”; já O Globo, com menor destaque, ressaltou que “Bolsa argentina despenca após prévias eleitorais”. As impressões do “mercado” foram o grande termômetro das eleições, como geralmente acontece no Brasil.

A Folha atribuiu as oscilações do “mercado” ao “cenário de incerteza política e econômica” na Argentina e destacou, em uma de suas reportagens,[5] a fala de Maurício Macri após as eleições: “o kirchnerismo não tem credibilidade”. Na mesma página, uma análise assinada por Sylvia Colombo[6] sugeriu que Macri, “ainda que tenha se esforçado” para “reintegrar a Argentina ao mundo derrubando travas protecionistas e cumprimentando líderes liberais” e “alinhando-se com Donald Trump e Juan Guaidó”, errou porque “não arrumou a casa”.

O posicionamento de Jair Bolsonaro com relação às prévias também teve destaque. Na segunda-feira (12/8), o presidente brasileiro, que manifestou publicamente seu apoio a Maurício Macri, declarou que uma vitória da “esquerdalha” na Argentina seria prejudicial ao Brasil, pois faria do Rio Grande do Sul uma nova Roraima. A fala de Bolsonaro, em alusão à crise venezuelana e à entrada de imigrantes daquele país pelo citado estado brasileiro, repercutiu no governo gerando um ruído entre militares e conservadores, segundo a imprensa. Em sua coluna, Merval Pereira[7] sugeriu que Bolsonaro “coloca suas preferências pessoais acima dos interesses do Estado brasileiro”. Folha de S. Paulo[8] e O Globo[9] citaram falas do vice-presidente Hamilton Mourão, como porta-voz de uma posição “moderada” dentro do governo.

A possibilidade de rompimento com o Mercosul caso Alberto Fernández vença as eleições foi ventilada por setores conservadores aliados a Jair Bolsonaro. Os meios criticaram tal posição, lembrando que a Argentina é um dos parceiros comerciais mais importantes do país. No entanto, sugeriram, a partir de falas do próprio presidente, uma possível ruptura não é descartada caso Fernández adote medidas protecionistas. Ao mesmo tempo em que postularam que um possível afastamento entre os dois países poderia ser prejudicial ao acordo recém firmado entre Mercosul e União Europeia, os meios enfatizaram que o Brasil tem autonomia para dar prosseguimento a acordos de livre-comércio. Para Eliane Catanhêde[10], o “liberal” Macri foi um “aliado fundamental” para a conclusão do acordo. Enquanto o presidente argentino é apresentado como um “aliado”, Alberto Fernández, e especialmente Cristina Kirchner, são vistos como imprevisíveis e instáveis e suas políticas – com base em um resgate histórico dos governos kirchneristas – como populistas ou intervencionistas.

As tentativas de aproximação entre as crises venezuelana e argentina foram afastadas pelos meios. Para Miriam Leitão,[11] “nem kirchnerismo é o chavismo, como quer fazer crer o presidente Jair Bolsonaro, nem o fracasso de Maurício Macri é derrota do liberalismo, como diz a ex-presidente Dilma Rousseff”. Para a colunista “Macri paga o preço de não ter entregado a mudança da economia que prometeu”. Mais uma vez, como pontuamos em outras análises no Manchetômetro, a política econômica “gradual” de Macri é vista como insuficiente para os problemas do país. Mesmo assim, os jornais pouparam a imagem de Macri, ao passo que não pouparam críticas a figuras associadas ao peronismo, como Cristina Kirchner, Alberto Fernández e Alex Kicillof, candidato ao governo da província de Buenos Aires.

EDITORIAIS

Como era de se esperar, a vantagem obtida na prévia pela chapa Fernandez/Kirchner é tratada, de modo geral, com desgosto e apreensão pelos editoriais da grande imprensa. No dia 13 de agosto, o assunto apareceu nos editoriais d’O Globo e da Folha.

O Globo[12] alerta para o susposto risco imediato do retorno do kirchnerismo (alta do dólar e elevação de juros) e atribui o quadro de agravamento do desequilíbrio econômico ao governo de Cristina, eximindo Macri de culpa. Para o jornal, a derrota se justifica pelo “voto de protesto contra quem está no poder”. O editorial insinua que, se o kirchnerismo for vitorioso, a Argentina estará decidindo não superar a falência. No mesmo dia, outro colunista da editoria de opinião d’O Globo, Bernardo Mello Franco, escreve que a declaração do presidente Jair Bolsonaro, desqualificando a chapa vitoriosa na Argentina, é uma “canelada”. O colunista destaca a recomendação constitucional de não-intervenção nas relações internacionais e ressalta o risco de represália do maior parceiro comercial do Brasil na região, caso a chapa de Fernandez vença.

No dia 14 de agosto, a declaração de Bolsonaro aparece também na coluna[13] de Elio Gaspari, que a caracteriza como “assombrosa”, e no editorial d’O Globo. Embora o editorial não seja especificamente sobre isso, o texto dedica críticas à “incontinência verbal” do presidente e ao seu estilo, que fere o decoro esperado do posto. O principal argumento  contrastado com o posicionamento de Bolsonaro é o fato de a Argentina ser um parceiro comercial importante, já que principal importador de produtos brasileiros no Mercosul. A preocupação central com relação à declaração é, portanto, o possível prejuízo econômico que vai acarretar.

Na Folha de S. Paulo[14], a temática foi tratada no editorial do dia 13, reforçando estereótipos empregados com frequência pela grande imprensa brasileira, como a acusação de que Kirchner teria sido “patrocinadora de um populismo de esquerda que devastou o país” e responsável por um “intervencionismo de tons autoritários”. A Folha naturaliza a proeminência da agenda econômica, apontando o fracasso de Macri e acusando-o de ter se distanciado do liberalismo, “chegando a promover controle de preços” e ter escolhido para vice, na campanha à reeleição, “Miguel Pichetto, um peronista histórico”. No final do editorial, a Folha critica a declaração do presidente Bolsonaro pela falta de sensatez e pela intromissão inadequada no pleito argentino.

Fugindo um pouco do padrão de seus pares, o Estado de S. Paulo só levou o evento a um editorial no dia 14 de agosto. Focado no “fantasma do populismo”, o texto[15] retrata Macri como “incapaz de convencer seus compatriotas a aceitar sacrifícios para ajustar a economia” e opina que o atual presidente está “pagando pela hesitação em atacar o vírus do personalismo”. O jornal lamenta a perspectiva de retorno de Kirchner como uma “manifestação da resiliência do populismo irresponsável na Argentina”, criticando seu projeto “nacional-desenvolvimentista” e a ausência de medidas de ajuste.

No mesmo caminho de crítica à política econômica argentina, Vinicius Mota, em sua coluna,[16] na Folha do dia 12, argumenta que desde os anos 1950 a Argentina vive entre recessões, e que Cristina é a “responsável pela última bancarrota”. O colunista ressalta o que vê como incoerências de Macri que, sendo “declaradamente liberal, congela preços, insufla o consumo com programas de parcelamento ‘sem juros’ ou a taxas reduzidas, segura o câmbio e sustenta na palavra mudança sua plataforma de reeleição”. Ou seja, o fracassso de Macri é atribuído ao fato de ele não ter cumprido o receituário liberal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na cobertura apresentada pela mídia brasileira, a deterioração da economia argentina, a queda na popularidade de Macri, a piora dos indicadores sociais, o aumento da desigualdade e da inflação são dados ruins, mas um possível retorno do kirchnerismo é visto como muito pior. A possibilidade de reeleição de Macri em outubro é creditada a uma melhora no cenário econômico mesmo que muitos considerem o resultado de domingo como “oficial”. Apostando em uma disputa polarizada, a imprensa brasileira apresenta Macri como um candidato que falhou na condução da economia, mas que ainda é digno de confiança. Alberto Fernández, por sua vez, é visto como um mero apêndice de Cristina Kirchner e do kirchnerismo, demonizado como uma perversão populista e economicamente irresponsável.

Nos editoriais, de modo geral, sobressai o já conhecido argumento de risco de retorno do populismo. Assim, as críticas costumam ser mais centradas nos governos de Cristina do que no governo de Macri que busca a reeleição. Quando Macri é criticado por não ter conseguido entregar o que prometeu, os motivos não são discutidos e seu modelo não é posto em cheque. A opção por uma política econômica que não é a do kirchnerismo é clara. Com relação a Bolsonaro, quando é mencionado em razão de sua declaração, é criticado por seu estilo ou pela possibilidade de atrapalhar as relações comerciais com a Argentina em um eventual futuro governo da chapa integrada por Cristina. É, de modo semelhante a Macri, criticado mais pela forma do que pelo conteúdo.

[1]Oposição surpreende e vence Macri com folga em primária. Folha de S. Paulo, 12/8/2019, p.A10

[2] Derrota em prévia para candidato de Cristina complica reeleição de Macri. O Estado de S. Paulo, 12/8/2019.

[3] Kirchnerismo fica à frente em prévia de eleição presidencial de outubro. O Globo, 12/8/2019

[4] Cristina, não. Folha de S. Paulo, 12/8/19, p.A10.

[5] Irritado, Macri diz que ‘kirchnerismo não tem credibilidade’. Folha de S. Paulo, 12/8/2019, p.A15.

[6] Kirchneristas vão à loucura com lavada de Fernández nas primárias. Folha de S. Paulo, 13/8/19, p.A15

[7] Contradições. O Globo, 12/8/2019, p.13/8/2019, p.2

[8] Bolsonaro critica possível vitória de ‘esquerdalha’ na Argentina. Folha de S. Paulo, 13/8/2019, p.A15

[9] Bolsonaro e Mourão divergem. O Globo, 13/8/2019, p.23

[10] E se não? O Globo, 13/8/19, p.A6

[11] O caso argentino é diferente de tudo. O Globo, 13/8/19, p.18

[12] Argentina vai decidir como, quando e se deseja superar a falência. O Globo, 13/8/2019, p. 2.

[13] Descontrole de Bolsonaro afeta relações externas. O Globo, 14/8/2019, p.3

[14] Pêndulo argentino. Folha de S. Paulo, 13/08/2019, p. A4.

[15] O fantasma do populismo. O Estado de S. Paulo, 14/08/2019, p. A3

[16] Mota, Vinicius. A saga argentina. Folha de S. Paulo, 12/08/2019, p. A2.

Por Beatriz Bandeira de Mello, Juliana Gagliardi e João Feres Júnior

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