Janelas fechadas para regulação da mídia
A seção “Tendências e Debates” do jornal Folha de S. Paulo do último dia 23 publicou o artigo “A janela não responde pela paisagem”, escrito por Pierre Manigault, presidente do jornal norte-americano The Post and Courier. Para Manigault, as críticas à performance da mídia brasileira nos últimos tempos são uma grande injustiça – são críticas cujo único fundamento seria o inconformismo com o “livre exercício do jornalismo profissional”. O texto vai além, e ataca diretamente iniciativas de regulação da mídia no continente latino-americano como a Lei de Meios argentina – segundo Manigault, a Lei de Meios seria um exemplo de líderes latino-americanos atuando com o “desejo de intimidar e controlar a mídia independente”.
Esta não foi a primeira vez que a Lei de Meios argentina foi citada nas páginas da Folha de S. Paulo. No final de 2014, em rara ocasião na qual o jornal incluiu a discussão sobre regulação econômica do mercado de mídia em sua pauta, o texto “Países têm limites para concentração” publicado na sessão “Poder” citou o marco regulatório argentino. A matéria descreveu a Lei de Meios como uma empreitada essencialmente política, “com o objetivo principal de atingir economicamente o grupo Clarín, que faz oposição ao governo da presidente Cristina Kirchner”. Ao final do texto, lia-se que a Lei de Meios foi considerada inconstitucional pela Justiça argentina – informação extremamente relevante para o assunto e totalmente incorreta. Após ter circulado para todos os “leitores de domingo” do jornal, o erro foi corrigido por uma pequena nota publicada três dias depois – o “Erramos” da edição do dia 10/12/2014, quarta-feira, informou: “Diferentemente do publicado na reportagem ‘Países têm limites para concentração’, a Lei de Meios foi considerada constitucional pela Corte Suprema da Argentina”.
Passemos para a televisão: no último dia 14, conforme noticiado no blog do Coletivo Intervozes mantido no site da revista Carta Capital, a novela A Lei do Amor, transmitida no horário das 21h pela Rede Globo, levou ao ar uma cena na qual o diálogo entre personagens do folhetim estabelece uma relação direta entre “regulamentação da mídia” e a ameaça à liberdade de imprensa. Na cena, em reação à atitude da vilã da novela para silenciar um jornalista investigativo, um personagem da trama exclama: “Então quer dizer que a regulamentação da mídia foi aprovada e eu nem tô sabendo?”. Segundo os dados do Ibope, naquela sexta-feira, dia 14 de outubro de 2016, a audiência da novela das 21h atingiu a marca de 8,084 milhões de domicílios – um número certamente superior à quantidade de pessoas que teve a oportunidade de ler os esclarecimentos sobre o que de fato é a proposta de regulação da mídia no blog do Intervozes.
Com o objetivo de, quem sabe, expandir um pouco mais o alcance das informações divulgadas pelo Intervozes no último dia 21 e reforçar o contraponto à relação enganosa e irresponsável que a novela global estabeleceu entre regulação dos meios de comunicação e censura jornalística, esclareço: a demanda por regulação da mídia não tem como objetivo “calar” a imprensa. Justamente o contrário: uma das principais pautas no debate pela regulação da mídia é a democratização dos meios de comunicação social, ampliando a diversidade de vozes e de meios. Uma das ferramentas jurídicas para atingir esse fim seria, por exemplo, regulamentar o artigo 220 da Constituição Federal que, em seu parágrafo 5º, estabelece o veto a qualquer forma de oligopólio ou monopólio sobre os meios de comunicação social – proibição claramente desrespeitada pelo Grupo Globo, notável oligopolista da mídia brasileira.
O mesmo Grupo Globo, no dia 29 de setembro, recebeu o aval do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) para adquirir todas as ações da empresa Valor Econômico, que edita o jornal Valor Econômico. Antes da aquisição, o controle da empresa era dividido entre o Grupo Folha e o Grupo Globo, cada um com 50% de participação. Aprovada em rito sumário pelo órgão de defesa da concorrência, a análise do caso foi estritamente econômica: como o jornal Valor Econômico foi considerado um veículo de público específico, não estaria no mesmo mercado dos demais jornais já detidos pelo Grupo Globo (O Globo, Extra e Expresso), de modo que não haveria, no mercado de “jornais de negócios”, quaisquer efeitos anticompetitivos decorrentes da operação.
Consumada a aquisição da totalidade da participação do Valor Econômico pela Infopar, holding pertencente ao Grupo Globo, foi publicada uma nota, assinada pelos irmãos Marinho, na capa da edição do jornal Valor Econômico do último dia 24 de outubro. Sob o título de “Compromisso” em letras garrafais, o texto bradou o comprometimento do Grupo Globo com a “busca incessante pela isenção e pela correção”. Para Roberto Irineu Marinho e seus irmãos magnatas (devidamente incluídos na lista de bilionários da revista Forbes), esses “princípios do bom jornalismo” são fundamentais para defesa dos pilares que, segundo os próprios irmãos Marinho, “sustentam uma sociedade que se quer saudável e justa”. Quais são esses pilares? Para a família Marinho, “a democracia, a república, a livre expressão e o livre mercado”.
Qual o real impacto dessas “mudanças acionárias” que, segundo a declaração do Grupo Globo, “podem acontecer sem prejuízo para a qualidade de uma empresa ou abalo em suas crenças?” O controle acionário de um jornal não exerce qualquer tipo de influência sobre sua linha editorial? Há algum mecanismo que garanta essa total separação entre propriedade dos meios e a voz que ele representa? A nota publicada pelos irmãos Marinho é obscura a esse respeito, afirmando que o Valor Econômico “seguirá sua jornada sem mudanças em suas crenças e qualidade”. O que isso significa? Quais crenças? Qual a medida de qualidade?
Em meio a tantos questionamentos, alguns dados do monitoramento realizado pelo Manchetômetro nos ajudam a refletir sobre o tema de forma mais objetiva. Os gráficos a seguir indicam o número de textos positivos, negativos e neutros em relação à economia nas capas do dos jornais Folha de S. Paulo e O Globo ao longo das últimas doze semanas:
Gráfico 1 – Temática “Economia” nas capas do jornal Folha de São Paulo
Fonte: Manchetômetro. Dados colhidos no dia 31 de Outubro de 2016.
Gráfico 2 – Temática “Economia” nas capas do jornal O Globo
Fonte: Manchetômetro. Dados colhidos no dia 31 de Outubro de 2016.
Ora, em uma comparação “a olho nu” dos gráficos, é possível identificar que há diferenças significativas entre as tendências observadas. Note-se, por exemplo, que na semana entre os dias 04 e 10 de setembro, enquanto O Globo atingiu um de seus picos de textos negativos na capa do jornal (seis no total), as capas da Folha apresentaram um único texto sobre a temática econômica – e este texto era positivo (no caso, uma manchete acerca dos valores arrecadados com a repatriação). Por outro lado, na semana do dia 09 a 15 de outubro, quando a Folha atingiu seu pico de textos negativos (quatro no total), este foi justamente o período no qual as capas d’O Globo não apresentaram chamadas ou manchetes negativas sobre a economia do País.
Independentemente de qualquer julgamento quanto às escolhas editoriais de cada um dos jornais em relação a suas pautas de economia que ocupam a primeira página, é necessário reconhecer, diante dos dados acima, que há linhas editoriais distintas, vozes diferentes em jogo. Como a composição entre essas duas perspectivas de cobertura da economia se refletiam na cobertura econômica verificada no Valor Econômico? Sob controle integral do Grupo Globo, a tendência de cobertura da economia do jornal Valor poderia se alinhar mais àquela do jornal O Globo?
Há estudos empíricos robustos sobre os efeitos da concentração econômica no mercado de mídia – em artigo publicado há alguns anos na Stanford Law Review, professores norte-americanos identificaram que quanto mais se levar a sério os aspectos de independência editorial na análise de operações concentracionistas no mercado de mídia, menor tende a ser o impacto da concentração econômica sobre a diversidade de conteúdo. A conclusão é resultado de um extenso estudo das fusões e aquisições que ocorreram na mídia impressa norte-americana nos últimos 20 anos.
Embora relevantes, questões concernentes à independência editorial do jornal Valor Econômico não foram debatidas no contexto da análise concorrencial. Aliás, sem um marco regulatório para o mercado de mídia, talvez o CADE não tenha sequer instrumentos para atuar nesse sentido e provavelmente seria repreendido por fazer qualquer tipo de análise que ultrapassasse as “questões de mercado” envolvidas. Daí a relevância de debatermos soluções regulatórias específicas para os meios de comunicação de massa, pensar nos desenhos institucionais necessários para garantir a democratização da mídia e reforçar o papel das instituições que já atuam no setor, como a EBC e a Anatel.
A luta por uma mídia mais plural e democrática não é pauta na grande mídia brasileira. Na realidade, quando discussão nesse sentido é suscitada nos principais veículos de mídia do país, o viés é claramente contrário a qualquer forma de intervenção regulatória e pautado por uma relação totalmente equivocada entre regulação e censura. Infelizmente, quando se trata de discutir a regulação da mídia no Brasil, a janela está sempre fechada – não há, sequer, paisagem a ser vista.