De quem é o dinheiro? Análise dos enquadramentos dos jornais na edição de 6 de setembro de 2017
No dia 5 de setembro, três acontecimentos pautaram o noticiário: a maior apreensão de dinheiro da história da Polícia Federal, que descobriu uma espécie de bunker em Salvador (BA), de uso do ex-ministro Geddel Vieira Lima (PMDB), com R$ 51 milhões em espécie, acomodados em malas; a divulgação de mais um áudio dos executivos da JBS, com conteúdo comprometedor para a Procuradoria-Geral da República (PGR); e a denúncia apresentada pelo PGR Rodrigo Janot contra Lula e Dilma, por organização criminosa.
Como os ocorridos vieram à tona ao longo do dia, os jornais impressos só puderam abordá-los no dia seguinte. Também era de se esperar que, dada a relevância dos fatos, eles marcassem presença nas capas dos principais veículos nacionais. Até aí, nenhuma novidade. O que chamou a atenção mesmo foram os diferentes enquadramentos editoriais adotados pelos jornais, que se refletem inclusive na diagramação de suas capas. Neste estudo, analisamos os enquadramentos adotados por Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo e O Globo, no dia 6 de setembro, a fim de entender como eles se relacionam com as posturas adotadas pelos mesmos jornais na cobertura recente da política brasileira. Para tanto, analisamos as capas dos jornais e seus respectivos editoriais.
De início, observamos que Estadão, Folha e O Globo trazem a mesma foto ampliada em suas capas: a do dinheiro apreendido pela Polícia Federal no apartamento do amigo de Geddel. Entretanto, é importante notar que nenhuma das três manchetes têm relação com a foto. Os jornais paulistas dedicaram suas manchetes às revelações do novo áudio da JBS, e o carioca, à denúncia de Lula e Dilma pelo Ministério Público.
Embora a análise de enquadramento e a análise de valências só nos permitam tecer considerações sobre o polo emissor do processo comunicacional, é difícil não intuir que a manchete, as chamadas e as fotos da capa são os elementos comunicativos mais vistos na publicação. Qualquer pessoa que deite os olhos sobre as capas em uma banca de jornal rapidamente corre o risco de fazer associações equivocadas sobre os assuntos, atribuindo o dinheiro apreendido a Lula e Dilma ou a JBS. No caso da capa de O Globo, essa probabilidade é acentuada pelo emprego da expressão “organização criminosa” na manchete, do subtítulo “corrupção em série”, e da legenda da matéria, que faz referência a 1,48 bilhões de reais em propinas supostamente pagos ao PT, fruto de um esquema em que Lula é referido como “grande idealizador”.
O mais surpreendente na capa do jornal carioca é que o texto relativo à foto é curto, ocupando nem meia filipeta, e faz referência ao nome de Geddel de maneira tortuosa: “o imóvel pertence a Silvio Ferreira, que o teria cedido para que o ex-ministro Geddel Vieira lima (PMDB-BA), em prisão domiciliar, guarde pertences”. Ademais, o texto além de curto é bastante descritivo, ao contrário daquele dedicado a Lula e o PT, rico em citações acusatórias.
Outra surpresa é que a chamada de capa sobre o áudio da JBS, que recebe o segundo maior destaque, enfoca seus desdobramentos para o Supremo Tribunal Federal (STF) e para o presidente Temer (“STF reage a áudio da JBS; Temer ganha fôlego”) e sequer contém o nome de Janot, seja no título ou no texto. Não bastasse isso, abaixo da notícia há chamada para o editorial intitulado “Decisão de Janot fortalece delação premiada”, bastante paradoxal e enigmático, dado que a lógica aponta o contrário. Ao lado, há charge na qual se vê Janot vitimado por flexa de Gilmar Mendes, e na sequência, pequenas chamadas para artigos de opinião de Merval Pereira, Miriam Leitão, Francisco Leali e Pedro Dias Leite, nenhuma delas fazendo referência direta ao PGR.
Em seu editorial, O Globo inicia contextualizando o fato “na extensa crônica de escândalos que reverberam na política brasileira desde 2005, quando explodiu o mensalão do PT”. Em seguida, narra a suspensão do acordo de delação premiada entre a PGR e os irmãos Batista por Janot após o recebimento dos últimos áudios, salientando a fragilidade da posição do procurador diante das circunstâncias, o provável enfraquecimento da denúncia contra Temer, que é de sua autoria, e a “extrema importância” da delação premiada continuar a ser usada como uma “ferramenta no combate à corrupção em altos escalões no Estado brasileiro”.
O editorial e a capa de O Globo mantêm uma coerência narrativa, a despeito de um flagrante paradoxo que na prática enunciam. O editorial diz que Janot perdeu a credibilidade para acusar Temer, mas a capa reproduz um sumário da acusação do mesmo Janot contra Lula, Dilma e o PT de forma bombástica e propagandística, totalmente afinada com o PGR. Aqui não há suspeita alguma, como se a perda de credibilidade do denunciante afetasse somente algumas de suas acusações e não outras. A coerência reside exatamente em manterem ambos uma atitude altamente enviesada contra o PT e seus políticos, coisa já revelada por estudos anteriores.
A capa do Estadão é bastante diferente daquela de O Globo. Como dissemos, a foto das malas de dinheiro domina a cena. Na legenda da foto, o redator informa que o dinheiro foi encontrado pela Política Federal “em apartamento que seria usado pelo ex-ministro Geddel Vieira de Lima (PMDB)”. Contudo, a manchete é sobre outro assunto: o caso das delações problemáticas acolhidas por Rodrigo Janot. Nela, o nome do PRG é citado e dito “sob pressão”, e ao seu lado, há um box chamando para o editorial pedindo a cabeça do procurador: “Janot deveria se demitir”. O editorial em si não poupa críticas a Janot e afagos a Temer. Entre outras coisas, diz que “o procurador-geral não tinha nada além de ilações” contra o peemedebista. Lula e Dilma são objeto de chamada na capa, em box pequeno inserido abaixo da manchete sobre Janot: “Procurador denuncia Lula e Dilma por ‘quadrilha do PT’”. O texto é curto e informa que o PGR chamou Lula de “grande idealizador” na denúncia e que pediu pena maior para o ex-presidente.
Como podemos notar, o foco dessa edição do Estado de S.Paulo recaiu todo sobre Janot, de modo bastante negativo quando o assunto era a denúncia contra Temer e de modo neutro quando se tratou da denúncia contra Lula e Dilma. É preciso anotar que os editores e jornalistas do periódico não se preocuparam em informar se as denúncias contra os ex-presidentes do Partido dos Trabalhadores eram compostas somente de ilações ou se havia alguma prova material neste caso. Isso não seria uma especulação gratuita, pois de fato os advogados do PT e de Lula insistem repetidamente nessa tese. Seria bastante relevante que o jornal se esforçasse em testar a veracidade de tal afirmação.
Por fim, temos a Folha de S. Paulo. Sua capa traz a mesma foto e uma manchete também sobre Janot, mas menos negativa que a do Estadão. O subtítulo da manchete declara “Menção enfraquece Janot”. O texto que segue descreve os fatos e se limita a repetir que o vazamento da informação “deve ter como efeito imediato o enfraquecimento de Janot”.
A capa também traz, grande, a foto das malas de dinheiro. O título da chamada informa que o imóvel “seria ligado a Geddel”, e no corpo do curto texto o nome do ex-ministro aparece mais três vezes. Na região central da página, na coluna da esquerda, há uma chamada para a denúncia da PGR contra Dilma e Lula. O texto também é curto e informa que ambos foram acusados de “integrar organização criminosa para desviar verbas da Petrobrás”, e logo em seguida expõem os argumentos de defesa, acusando o procurador de ação política e de não ter provas materiais.
A Folha ainda dedica um editorial a Janot, intitulado “Delação Vulnerável”. Nele, desfia críticas ao comportamento do PGR. Ao contrário do Estadão, o jornal não tenta poupar Temer, pois o editorial parece sutilmente lamentar que o enfraquecimento de Janot contamine as denúncias contra o presidente. A Folha ainda publicou o editorial “Vexame olímpico” no dia, que abre afirmando que “a Olimpíada de 2016, anunciada como grande conquista do Brasil durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT)” deu em mais um escândalo de corrupção.
Essa breve análise da cobertura dos três jornais no dia 6 de setembro mostra divergências e pontos comuns em torno da figura do PGR. No eixo noticioso PGR-Temer, os jornais tiveram posições diversas. O Globo foi bastante brando em relação a Janot, preferindo focar no novo “fôlego” dado a Temer. Mas o atual presidente tampouco foi alvejado; seu comparsa, Geddel, mal é citado no caso da mala de dinheiro, cuja foto ilustra a capa. Em O Globo, capa e editorial são espelhos um do outro. No outro extremo temos o Estadão, que ataca Janot frontalmente, pedindo sua resignação em editorial, e poupa Temer, sugerindo não haver provas contra ele. A Folha de S. Paulo fica no meio do caminho, apontando o enfraquecimento de Janot na capa e em editorial, mas sem acusá-lo diretamente.
Já no eixo PGR-Lula, as coisas são bem diferentes. O Globo assume a posição mais ferina, estampando manchete seguida de texto, ambos altamente negativos para o ex-presidente, Dilma e o PT. O Estadão traz a notícia da acusação contra Lula e Dilma na capa, mas de maneira mais modesta, se limitando a uma citação entre as várias acusações bombásticas feitas por Janot. A Folha também cedeu um lugar menor na capa para a acusação contra os ex-presidentes, inclusive tendo o cuidado de citar os argumentos de suas defesas. No editorial sobre as Olimpíadas, contudo, não deixa de associar nome de Lula a um escândalo de corrupção com o qual não há qualquer evidência de seu envolvimento.
A capa de O Globo, sugerindo associação entre a foto das malas de dinheiro e os nomes de Lula, Dilma e PT é mais um exemplo lamentável de manipulação da notícia. Mas há algo mais sutil e, no entanto, tão deplorável quanto, na postura do Estadão frente a Temer e Janot. Em seu editorial, o jornal cobra de Janot evidências materiais da corrupção de Temer, para além de ilações. Tais evidências nunca são cobradas quando as acusações recaem sobre Lula e o PT, uma postura necessária para um jornalismo que se propõe equilibrado e investigativo. Infelizmente, esse vício caracteriza também as coberturas de Folha de S. Paulo e O Globo. No vício da parcialidade politizada, os três grandes jornais se encontram.