O Manchetômetro é um site de acompanhamento da cobertura da grande mídia sobre temas de economia e política produzido pelo Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública (LEMEP). O LEMEP tem registro no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e é sediado no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O Manchetômetro não tem filiação com partidos ou grupos econômicos.

Parceria

Diplomacia, conflito e imprensa

foto: Arthur Max/MR

Este ensaio propõe uma reflexão sobre a política externa brasileira do governo Bolsonaro e a atuação do Itamaraty a partir da abordagem e recortes do jornal O Estado de São Paulo em momentos marcantes da atual diplomacia brasileira. Lideradas pelo Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, as relações do Itamaraty com outras soberanias têm sido testadas por declarações polêmicas de membros da família presidencial e do governo, responsáveis pela quebra de tradições e parcerias históricas. Focaremos aqui na  cobertura recebida por episódios de tensão envolvendo o Brasil e dois de seus parceiros estratégicos, China e Argentina.  

CHINA

A tensão com a China começou durante a campanha eleitoral, em 2018, com afirmações do então candidato Jair Bolsonaro de que o país asiático, principal parceiro comercial do país, queria “comprar o Brasil”. Ecoando a posição do seu chefe, o Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, declarou durante aula magna a formandos do Itamaraty, meses após a eleição de Bolsonaro, que o Brasil não iria “vender sua alma” para a “China comunista”. 

Após acordos e encontros realizados ao longo de 2019, o governo brasileiro retomou o clima de tensão, sobretudo após o início da pandemia do novo coronavírus.  Em um de seus tweets, o deputado federal Eduardo Bolsonaro  comparou a pandemia ao desastre na usina nuclear de Chernobyl. Filho do presidente da República e ex-candidato a embaixador do país nos Estados Unidos, Eduardo  escreveu em março deste ano: “Substitua a usina nuclear pelo coronavírus e a ditadura soviética pela chinesa … A culpa é da China e liberdade seria a solução”, afirmou.

IMAGEM 1 – TWEET DE EDUARDO BOLSONARO (MARÇO 2020)

Reprodução: Twitter/Conta oficial de Eduardo Bolsonaro

Em resposta, a embaixada chinesa e o embaixador chinês no Brasil, Yang Wanming, repudiaram a publicação e exigiram retratação do deputado, também pelo Twitter, prometendo protestar junto ao Itamaraty e à Câmara dos Deputados. A resposta da embaixada mencionou visita de Bolsonaro a Miami e jantar que teve com o presidente estadunidense, Donald Trump, em sua casa de veraneio, no dia anterior.

IMAGENS 2 e 3 – TWEETS DA EMBAIXADA DA CHINA NO BRASIL E DO EMBAIXADOR CHINES NO BRASIL (MARÇO 2020)

Reprodução: Twitter/Conta oficial da Embaixada da China no Brasil e do Embaixador Chinês, Yang Wanming.

No dia seguinte, 19 de março, o Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, pediu uma retratação do embaixador chinês e anunciou a insatisfação do governo brasileiro com  a reação chinesa. Segundo nota do ministro, compartilhada também pelo Twitter, “é inaceitável que o Embaixador da China endosse ou compartilhe postagem ofensiva ao Chefe de Estado do Brasil e aos seus eleitores, como infelizmente ocorreu ontem à noite”. 

No mês seguinte, o então Ministro da Educação, Abraham Weintraub, publicou em uma postagem, já apagada no twitter, uma insinuação sobre a pandemia do coronavírus ser um “plano infalível” da China para “dominar o mundo”, sugerindo ainda que os chineses teriam aliados no Brasil para este “plano”. A postagem utilizou o personagem infantil “Cebolinha” para estereotipar racialmente o povo chinês e a maneira como pronunciam algumas palavras em português, trocando a letra “r” pelo “l”. Em nota, a embaixada afirmou que a declaração tem “cunho fortemente racista” e causa “influências negativas” nas relações entre os dois países.

IMAGEM 4 – TWEET DE ABRAHAM WEINTRAUB (ABRIL 2020)

Reprodução: Twitter/Conta oficial de Abraham Weintraub.

Nas duas notas de protesto divulgadas pela embaixada em resposta às postagens do deputado e do Ministro da Educação, a semelhança é a menção que esse tipo de abordagem de membros do governo brasileiro têm consequências negativas no desenvolvimento saudável das relações entre China e Brasil. Nos recortes jornalísticos apresentados abaixo, esses momentos vexatórios da diplomacia brasileira são percebidos como catalisadores do isolamento do Brasil em suas relações externas.

OPINIÃO: ARTIGOS E EDITORIAIS

Selecionamos três editoriais e dois artigos de opinião do jornal Estado de São Paulo que abordam as consequências desses episódios nas relações bilaterais entre Brasil e China. Em 7 de abril, editorial “Um ministro abusado” afirma que momentos irresponsáveis como as publicações de Eduardo Bolsonaro e Weintraub foram marcadas por “coincidências”, como a decisão do governo chinês de enviar material médico-hospitalar para os Estados Unidos em detrimento de acordo que já havia sido fechado anteriormente com o Brasil. 

No primeiro incidente, segundo o jornal, Araújo “saiu em defesa do filho do presidente”. Para o jornal, a opinião do deputado “não refletia a posição do governo brasileiro”. Como tentativa de amenizar a situação, o meio mencionou que Bolsonaro, após declarações de seu filho, “ligou para o presidente chinês, Xi Jinping, a pretexto de reforçar os laços de amizade”. Indagou, ainda, qual seria o próximo posicionamento e ação do governo brasileiro para amenizar os estragos do incidente.

O mesmo editorial afirma que “brasileiros colhem os ventos e os raios da tormenta criada pela copa e cozinha de Bolsonaro”. O descarte do respeito a outras soberanias, materializado nas falas de Eduardo e Weintraub, em nome de um projeto político é visto como prejudicial para o Brasil na relação com seus parceiros comerciais e de investimentos. O texto afirma, em tom de reprovação, que esses momentos dão “a medida do descalabro com qual governo Bolsonaro vem se comportando em matéria de política externa”.

Em 9 de abril, editorial “O Brasil contra o mundo” afirma que “o país não pode cometer erros da natureza daqueles cometidos pela ala lunática do governo”, ao contextualizar a crise provocada pelo covid-19 no mercado mundial e nas relações e encontros multilaterais. O jornal afirma que o “Itamaraty está sendo incapaz de coordenar os interesses dos ministérios na área externa porque também está imerso na ideologia deletéria que move Bolsonaro e seus assessores aloprados” Ao parafrasear Sérgio Amaral, o editorial afirma que “o mundo não está contra o Brasil, nós é que estamos contra o mundo”, e que o Brasil “sairá enfraquecido quando acabar a pandemia”.

No dia 12 de abril, o editorial “Irresponsabilidade diante da crise global” afirma que provocações políticas sem sentido põem exportações em perigo. Ou seja, o viés ideológico nas posições adotadas pelo governo é entendido pelo jornal como prejudicial para o país no âmbito  da economia. O texto critica as “bobagens graves cometidas pelo deputado Eduardo Bolsonaro e o ministro da educação”, que criaram atrito com a China. 

Preocupado com as incertezas causadas pela pandemia no mercado internacional, o meio afirma que “em qualquer circunstância seria tolice e irresponsabilidade pôr em risco as exportações”, mais uma vez apontando a consequência negativa desse momento da diplomacia brasileira na relação externa e nas negociações comerciais do país. Completa afirmando que o erro se torna mais grave quando prejudica ou pode prejudicar a principal viga de sustentação do governo, o comércio. Cita ainda que o presidente “fez isso mais de uma vez criando mal estar com a China e com países muçulmanos também grandes clientes do agronegócio”. Para o periódico, além de gratuitas, as provocações são irresponsáveis e tem um lado esquizofrênico. O texto termina com a indagação se o “presidente Bolsonaro percebe a gravidade dos erros e aberrações do comportamento de seu Ministro”. Ao longo do texto, as ações e declarações do governo são enquadradas como irracionais ou irresponsáveis.  

Em artigo de opinião publicado em 15 de maio, “A vida numa ‘Live’ sobre coronavírus”, Fernando Gabeira afirma que “a política de negação da extrema-direita internacional acabou encontrando no Brasil a sua face mais rude”. O autor afirma que “o vírus no Brasil metamorfoseou-se em molécula política”. Ao contrário dos textos editoriais, Gabeira enxerga o movimento do governo bolsonarista à luz da extrema-direita internacional. 

Em posição distinta dos demais recortes analisados, no artigo de opinião “O vírus, a China, os Estados Unidos e nós” de 30 de maio, Paulo Sotero afirma que “o Brasil só tem a perder quando escolhe lado na disputa entre duas potências dominantes, ambas parceiras estratégicas do país”. O autor afirma que a China está “pronta para ampliar a cooperação bilateral a começar pelo combate à pandemia, não obstante as declarações sinofóbicas dos ministros das Relações Exteriores e da Educação e do padrinho de ambos no Planalto, o deputado Eduardo Bolsonaro.”

Ao afirmar a disponibilidade chinesa para ampliar a cooperação bilateral, apesar das declarações de ministros e do deputado, Sotero coloca as relações sino-brasileiras acima das declarações dos membros do governo. De modo geral, o peso chinês na economia brasileira provoca no jornal uma reação contrária às declarações de Eduardo e Weintraub. Esta reação em cadeia não é comum, ainda mais quando as declarações atingem países para os quais a mídia dispensa tratamento menos benevolente. Nestes casos, declarações consideradas “polêmicas” não são debatidas com tamanha intensidade. 

Como vimos até aqui, no caso da China as ações foram percebidas como devaneios da ala “ideológica” do governo. O jornal atua como mediador, buscando apaziguar o clima, citando a importância da potência asiática para as exportações brasileiras e, sobretudo, para o agronegócio, minimizando os impactos das declarações sobre a relação entre os dois países, e “isolando” Eduardo e Weintraub ao dizer que suas visões não correspondem à totalidade do governo, uma vez que suas ações são percebidas como uma oposição ao que deveria ser o papel da diplomacia.

ARGENTINA

Os ruídos entre os dois países começaram em 2019, quando Bolsonaro fez campanha para o então presidente da Argentina, Mauricio Macri, posteriormente derrotado por Alberto Fernández nas eleições presidenciais.  O brasileiro chegou a afirmar que se Fernández fosse eleito, argentinos “invadiriam” o Brasil para fugir de problemas com seu país, fazendo um paralelo com o ocorrido em Roraima com os venezuelanos. Fernández reagiu chamando Bolsonaro de “misógino, racista e violento”. Em seguida, Eduardo Bolsonaro publicou um tweet intitulado “Não é um meme” com uma foto dele segurando um rifle de assalto ao lado de uma montagem com o rosto do filho de Alberto Fernández em um corpo de drag queen. 

IMAGEM 7 – TWEET DE EDUARDO BOLSONARO (OUT 2019)

Reprodução: Twitter/ Conta oficial de Eduardo Bolsonaro

OPINIÃO: ARTIGOS E EDITORIAIS

O artigo de opinião “Retomando diálogo com Argentina “, assinado por Rubens Barbosa no dia 11 de fevereiro, aborda a visita do Ministro de Relações Exteriores da Argentina, Fernando Solá, ao Brasil como indicativo positivo da aproximação diplomática entre os países. O texto afirma que “tudo indica que com essa visita começa a se restabelecer o diálogo governamental direto entre os países, interrompido por declaração de críticas do presidente Jair Bolsonaro acerca do candidato peronista”.

É importante notar que neste texto o autor afirma que “ a volta da tensão entre Brasília e Buenos Aires decorrente de uma escalada da retórica por divergências ideológicas entre o governo de direita liberal na economia e conservador nos costumes no Brasil e o governo de centro-esquerda na Argentina”. A crítica, feita no texto a ambos os países, é pela necessidade de “superar a diferença ideológica”, que “não deve contaminar o relacionamento bilateral”.

De forma semelhante, editorial “A reaproximação Brasil Argentina”, de 16 de fevereiro, afirma que “depois de meses de provocações, os presidentes Jair Bolsonaro e Alberto Fernández parecem haver entendido enfim aquela obviedade e decidido voltar a sensatez”, quando diminuíram as provocações. Os dois planejaram uma reunião bilateral em março, na posse do presidente uruguaio Luis Lacalle Pou, em Montevidéu. O encontro, contudo, não ocorreu, pois Fernández não viajou por conta de um discurso realizado na cerimônia de abertura dos trabalhos legislativos da Argentina.

CONCLUSÕES

Percebemos nos recortes selecionados a constatação pelo jornal da existência de um viés ideológico nas relações externas e diplomáticas do Brasil, que são apontadas como necessárias de serem superadas para o melhor desenvolvimento político e econômico do país. No caso da China, a ameaça da pandemia do coronavírus foi entendida como um inimigo em comum, uma força capaz de unir os dois países ou de agravar a tensão provocada por membros do governo Brasileiro e ainda não apaziguadas pelo Itamaraty e Bolsonaro. 

A fala do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e do ex-ministro da Educação foram associadas a “ala ideológica do governo”, que expõe claramente sua posição, por vezes sinofóbica, nas redes sociais contrária à China e alinhada aos Estados Unidos. Há, no entanto, uma contradição no modo como o jornal abordou o impacto dessas falas. Elas foram percebidas ora como dificultadoras ora como determinantes da relação externa brasileira. Em ambos os casos seus desdobramentos foram vistos como um risco para relações bilaterais e aos acordos econômicos firmados entre os dois países. O jornal atuou neste caso como apaziguador. O consenso é o processo vexatório causado pelas declarações que catalisam o isolamento do país em meio a pandemia.

No caso da Argentina, a retomada do diálogo entre os países foi vista como positiva, embora proporcionada por necessidades mútuas dos dois países também nas áreas econômica e comercial, em meio à crise, e não pelo trabalho de reconciliação diplomática entre seus presidentes. O esforço e a campanha do jornal por uma reconciliação com o país vizinho, no entanto, foi muito menor quando comparado com o caso chinês. Isto reflete, em parte, o peso de ambos os países para as relações exteriores e o modo desproporcional como a mídia enquadra o relacionamento do Brasil com seus parceiros diplomáticos. A relação com o vizinho sul-americano é necessária, porém não tão fundamental como o vínculo estabelecido com o país asiático.  

* Pedagoga e Mestranda em Educação, cultura e comunicação pela FEBF-UERJ

Por Anna Clara Rodrigues S. Bibiani* e João Feres Jr.

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