Escondendo fatos: o uso político da fala de Lula pela mídia
Nas últimas semanas, o debate sobre regulação de mídia voltou à pauta, após o ex-presidente Lula ter declarado ser favorável à regulação da mídia no país, nos moldes daquela praticada na Grã Bretanha. A imprensa brasileira reagiu à fala de Lula por meio de editoriais, colunas, artigos de opinião e até um episódio de podcast. Embora apresentem intensidades distintas, todas as reflexões presentes nos jornais se posicionaram de maneira crítica à proposta de regulação da mídia e acusaram o ex-presidente de autoritário e de defender a censura.
Dos três jornais impressos analisados pelo Manchetômetro, O Globo foi o que dedicou menor espaço ao debate desta pauta. Nos dias seguintes à entrevista do petista, foram publicadas notas descritivas e alguns textos opinativos, como é o caso da coluna de Cacá Diegues, que reserva uma frase de seus texto para enfatizar a importância de não haver regulação da mídia. Já Ascânio Seleme, em tom irônico, chama Lula de corajoso ao se expor a um tema polêmico, estando “do lado errado da corda”. O colunista parte para o ataque, qualificando a proposta do líder do PT de censura disfarçada com o propósito de “calar a imprensa antes de ouvir dela denúncias contra o seu governo”.
A Folha, por sua vez, em editorial intitulado “A ideia fixa de Lula”, justifica a proposta no fato de o ex-presidente, chamado pejorativamente de “cacique” no texto, supostamente não conviver bem com críticas, cobranças e relato de desmandos. Segundo a opinião do jornal, a regulação da mídia, que, segundo o próprio texto declara, é uma realidade em países desenvolvidos, seria manipulada de acordo com as “teses dirigistas” do petista. A Folha se diz favorável ao combate dos monopólios, mas questiona se esse é mesmo o objetivo de Lula, ou se seria “usar dinheiro do Estado para favorecer coberturas” ou “intervir sobre conteúdos”.
Outro texto publicado pela Folha que chamou atenção foi artigo de autoria de ex-presidente Michel Temer. Apesar de Lula e o termo “regulação da mídia” não serem citados uma única vez, fica evidente que a reflexão é uma reação ao debate, ponte que a própria Folha faz em seu painel. Temer se limita a enfatizar as definições constitucionais a respeito da liberdade de imprensa, direito de resposta e afins. Para o emedebista, a imprensa dá sinais de respeito a esses direitos já que “de tempos para cá, sempre procuram indicar o que diz ‘o outro lado’”.
Como de costume, o Estado de S. Paulo carrega nas críticas e na utilização de adjetivos negativos ao debate quando o assunto é Lula. Além de chamar o ex-presidente de mentiroso, o jornal, na mesma linha de seus pares de imprensa, atribui tal iniciativa à personalidade do petista, dita autoritária e personalista. Na seção Notas & Informações, o jornalismo independente é descrito como um dos inimigos do petista, que teria o plano de “cercear a liberdade de imprensa”. A cobertura do evento assume um tom um pouco mais ameno no texto da Redação, embora no título a palavra regulação tenha sido utilizada entre aspas, sugerindo tratar-se de coisa diversa. Ao longo do texto são apresentadas falas de Lula afirmando ser contra a censura e favorável a um modelo próximo ao da Inglaterra. Também são apresentados especialistas, um deles considera a regulação da mídia um “tema tóxico em que não há a menor possibilidade de ganho” e o outro acredita ser necessário o debate, como ocorreu em outros países, sem que se torne “bandeira de partido”.
Ainda no que toca os modelos possíveis de regulação, Lula declarou não pretender espelhar-se em Cuba ou na China, países comunistas, mas na Inglaterra. Em sua coluna no Estadão, Pedro Doria diz que a proposta do petista é “ambígua, confusa, misturando temas”. Doria destaca o fato dos principais periódicos ingleses não participarem do sistema de regulação midiática do governo inglês, por considerarem ser ele uma forma de censura governamental – qualquer semelhança com o argumento brasileiro é mera coincidência.
Conforme podemos perceber, nesse episódio a grande imprensa se dedicou muito mais a atacar Lula do que, de fato, a defender o sistema brasileiro de comunicação. Afirmar que a proposta de Lula, pautada no exemplo britânico, é uma tentativa de censurar a mídia brasileira é leviano. O sistema inglês de regulação da comunicação é complexo e compreende regras distintas para diferentes meios de comunicação (escrita, visual, internet, etc). Vamos, então, esclarecer o tema antes de formar nosso juízo sobre a posição de Lula
Após uma série de polêmicas e processos envolvendo empresas de comunicação, o Press Recognition Panel (PRP) foi criado como órgão independente em 2014, com o fito de avaliar a autorregulação da imprensa britânica. Conforme previsto no édito real que instituiu o PRP, tanto os órgãos reguladores quanto os veículos de imprensa que aderirem ao sistema devem seguir critérios específicos. O PRP tem o poder de aplicar multas aos jornais e a órgãos reguladores que desrespeitarem as regras, além de poder exigir espaço para o direito de resposta. No entanto, não é o PRP quem arbitra tais casos. Para os processos de arbitragem e decisão são designados corpos regulatórios como a Impress, o único órgão de auto-regulação da mídia britânica atualmente. Esses órgãos de auto-regulação precisam divulgar relatórios e respeitar regras de transparência, além de passar por constantes processos de avaliação pela PRP.
A Impress, não é financiada pelo governo, mas é custeada por fundações e fundos de filantropia. O sistema prevê a arbitragem como saída para processos contra jornais. Caso uma das partes rejeite a arbitragem e decida seguir com o processo para as Cortes Altas, o estatuto prevê que esta parte deverá pagar os custos de todo o processo, mesmo em caso de vitória. Além disso, o sistema prevê multas muito menores aos periódicos que são filiados ao PRP, o que protege pequenos meios contra empresas poderosas. A principal crítica dos grupos contrários ao sistema PRP é de que ele seria um braço do governo contra os jornais, que seria custeado por dinheiro público e teria como objetivo punir a imprensa britânica com altas multas.
Os jornais Financial Times, Independent e The Guardian, não ficaram satisfeitos com o projeto do PRP e criaram The Independent Press Standards Organisation (IPSO), sua própria organização independente para regular padrões de mídia, que não tem obrigação de seguir as recomendações da PRP. Há, contudo, dúvidas acerca da capacidade da IPSO de funcionar de fato como órgão de regulação, primeiramente porque está sob a influência direta dos editores dos grandes jornais. O think tank Media Standards Trust e o Sindicato Nacional de Jornalistas (NUJ), por exemplo, levantam sérias dúvidas acerca da efetividade do IPSO. Entre outras coisas, a IPSO não possui poder investigativo e, até 2018, não conseguiu emplacar nenhum direito de resposta nos três jornais. O Sindicato ainda acusa o IPSO de não prover meios efetivos para que jornalistas resistam ao assédio de editores no que toca a manipulação da notícia.
Como o exemplo britânico permite constatar, o tema da regulação de mídia é complexo e delicado. Existem argumentos para defender e criticar sistemas de regulação econômica ou mesmo de opinião da imprensa. Assim, é essencial realizarmos este debate para qualificar nosso sistema midiático. Portanto, a posição dominante da grande imprensa brasileira de desqualificar o debate, reduzindo todo esforço de regulação à censura é um verdadeiro desserviço à nossa democracia e à qualidade da comunicação no país. Ademais, optam por punir aqueles que levantam a questão, no caso Lula, com argumentos ad hominem que nada contribuem para a discussão, ao passo que deixam de informar o público sobre as formas reais de regulação da comunicação praticadas em países mundo afora.
Os problemas do sistema de comunicação brasileiro são muitos e muito urgentes. Temos que aprender a lidar com a criação e difusão de informações, trazendo também para a discussão os casos em que veículos de imprensa tradicionais estão implicados. Temos que tratar da questão da propriedade cruzada de diferentes serviços de mídia, problema que tem sido solenemente ignorado por nossos legisladores e órgãos de imprensa. Temos que desconcentrar a propriedade dos grandes meios, problema responsável diretamente pela falta de pluralidade da comunicação em nosso país. Infelizmente, como o debate público é agendado e enquadrado pelos meios de comunicação que exercem controle oligopolístico sobre a produção de conteúdo jornalístico, o tema da regulação da imprensa simplesmente não aparece, ou quando aparece, como foi o caso com Lula, ele é toscamente simplificado e utilizado como instrumento de pugna política. A questão, então, é como sair desse ciclo vicioso.