Lula, “persona non grata” na imprensa brasileira
No dia 18 de fevereiro de 2024, durante sua visita à Etiópia, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva criticou as ações de Israel na Faixa de Gaza. De acordo com o presidente: “O que está acontecendo na Faixa de Gaza e com o povo palestino não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu: quando Hitler resolveu matar os judeus.” Essa declaração provocou reações contundentes da imprensa brasileira: O Globo, Estadão e Folha de São Paulo condenaram as palavras de Lula.
A crítica de Lula às ações do governo israelense não é inédita: desde 2023, o presidente se manifesta contrariamente à escalada da violência na Faixa de Gaza. As primeiras medidas do governo Lula 3 diante do conflito entre Israel e a Palestina ocorreram no mês de outubro de 2023, quando o Governo Federal lançou a “Operação Voltando em Paz”, com o objetivo de repatriar os brasileiros que estavam nas zonas de conflito. Um gabinete de crise foi estabelecido em 7 de outubro, mesmo dia em que os confrontos intensificaram, com as embaixadas do Brasil em Tel Aviv (Israel) e Cairo (Egito) e o Escritório de Representação em Ramala (Palestina) sendo mobilizados para coordenar a repatriação dos brasileiros afetados. Em 18 de outubro, 1.135 brasileiros já haviam sido resgatados em voos da Força Aérea Brasileira. A operação envolveu quatro aeronaves, incluindo um avião presidencial, e o Governo Federal providenciou transporte terrestre por meio de ônibus, conectando cidades israelenses ao aeroporto de Tel Aviv.
No mês seguinte, em 13 de novembro de 2023, Lula condenou o comportamento do governo israelense no conflito com o Hamas. Durante a recepção de repatriados, o presidente declarou: “O ato de ‘terrorismo’ se dá por Israel não considerar que as crianças não estão em guerra. Ao não levar em conta que as mulheres não estão em guerra. Ao não levar em conta que eles não estão matando soldados, mas matando crianças.”
Ele ressaltou a falta de consideração de Israel pelos grupos não combatentes na zona de conflito, enfatizando as consequências humanitárias e materiais do conflito, expressando preocupação com a destruição de infraestruturas construídas ao longo de décadas. No dia seguinte, durante o programa “Conversa com o Presidente”, Lula reiterou suas críticas a Israel, caracterizando a situação como uma “guerra insana” e expressando descontentamento com o que ele considerava o “comportamento de Israel” em relação a crianças, hospitais e mulheres na Faixa de Gaza. Ele afirmou: “Eu tenho de matar o monstro sem matar as crianças. É simples assim.”
Dessa forma, não podemos afirmar que a fala do presidente brasileiro fora algo fortuito. Há no Brasil hoje uma narrativa contra o comportamento de guerra israelense presente desde o ano passado e os jornais sempre críticos ao posicionamento pessoal de Lula e elogiosos das ações do governo. No dia 18 de fevereiro de 2024, todavia, as palavras do presidentegeraram críticas veementes dos jornais, com destaque para o editorial de O Globo intitulado “Ao comparar Israel a nazistas, Lula agride a história”, de 19 de fevereiro, que classificou a declaração do presidente como “uma afronta à memória das vítimas e sobreviventes do Holocausto”. Nesse editorial, O Globo afirmou que as declarações do presidente “são incompatíveis com a atitude que se espera de um presidente da República e envergonham o Brasil”.
O editorial crítico da Folha de S.Paulo, intitulado ‘Desvarios de Lula’, não se limitou a criticar as declarações do presidente, mas também lançou uma observação que, posteriormente, ganhou destaque em um editorial subsequente voltado para o governo israelense. Na primeira análise, a Folha não apenas repreendeu as palavras de Lula, considerando-as inadequadas e descontextualizadas, mas também fez uma observação peculiar: “o governo de Israel tem muito a ser criticado”.
Essa observação inicial, que outros jornais não haviam abordado, tornou-se o ponto central de um editorial subsequente, publicado dois dias depois, em tom de crítica direcionada a Benjamin Netanyahu, então primeiro-ministro de Israel. O segundo editorial, intitulado ‘Governo Netanyahu é um Obstáculo para a Paz’, criticou o governo israelense, pela mortandade provocada por Israel após os ataques do Hamas na Faixa de Gaza.
O Estadão, por sua vez, expressou críticas incisivas em dois editoriais consecutivos. No primeiro, intitulado ‘Vandalismo Diplomático’, o jornal classificou as declarações de Lula como um ‘dia infame na história da diplomacia brasileira’, acusando-o de deslegitimar Israel. No editorial seguinte, ‘A Guerra de Lula’, o Estadão ressaltou que o presidente parecia ter declarado uma guerra simbólica ao Ocidente, buscando se posicionar como líder político do ‘Sul Global’. O jornal também argumentou que a declaração de Lula “[…] obliterou suas oportunidades de integração econômica e prejudicou as possibilidades de cooperação pela promoção da paz, da democracia, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais que a Constituição traçou como norte da diplomacia nacional”. Passados mais de uma semana, o Estadão reiterou a necessidade de desculpas por parte de Lula, sublinhando que o tempo decorrido ainda era insuficiente para o esquecimento do erro e a possível substituição por outra crise.
Em relação às reações internacionais, a imprensa esperava manifestações críticas a Lula, mas nenhum líder internacional além de Benjamin Netanyahu rejeitou as declarações do presidente brasileiro. Gustavo Petro, presidente da Colômbia, expressou apoio ao presidente brasileiro, afirmando que “Lula só falou a verdade”. Este silêncio internacional foi mencionado pelo jornal O Globo somente dois dias após a declaração de Lula, em uma matéria intitulada “Líderes internacionais evitam comentar a crise entre Brasil e Israel: Petro apoiou Lula, e nenhum condenou a fala”. Dessa forma, apesar das previsões de possíveis impactos negativos nas esferas econômica e diplomática para o Brasil, a ausência de críticas internacionais notáveis e o apoio expresso de líderes como Gustavo Petro, sugerem que as previsões da imprensa não se verificaram na prática. Mesmo assim, semanas após a declaração de Lula, o tema continua central nas discussões, com apelos persistentes dos jornais brasileiros por retratação por parte de Lula.
Como se pode constatar, a fala do presidente brasileiro gerou mais reações internas do que externas, particularmente da grande imprensa, que tem pautado enfaticamente o ocorrido. A oposição usou da repercussão negativa para abrir um pedido de Impeachment contra Lula. A deputada Carla Zambelli (PL – SP) protocolou no dia 22 de fevereiro o pedido com o argumento de que a comparação das mortes na Faixa de Gaza com o Holocausto seria um crime de responsabilidade. Os jornais têm dado espaço ao tema, como a chamada da Folha de S. Paulo do dia 28 fevereiro: “Gestão petista ameaça retaliar quem assinou impeachment”.
Conforme já notado em outras análises do Manchetômetro, os grandes jornais brasileiros seguem fielmente uma linha política de política externa muito alinhada ao Departamento de Estado dos Estados Unidos e às potências europeias ocidentais. É natural que o projeto de colocar o Brasil novamente na liderança do Sul Global, que é abertamente abraçado por Lula e seu governo, se choca frequentemente com a orientação editorial dos jornalões, para os quais ainda vale a velha frase do embaixador Juracy Magalhães, dos tempos da ditadura, segundo o qual “o que é bom para os Estados Unidos, é bom para o Brasil”!
