Pacto de neutralidade
Em maio de 2016, a Folha de S. Paulo publicou uma coluna de Mario Vitor Santos em que este reverbera[2] o entendimento que muitos jornalistas têm da própria profissão. No texto, Santos afirma que as normas e técnicas jornalísticas não são enfeites, mas, sim “peças essenciais para a sobrevivência da democracia”. Na ocasião, o jornalista e colunista da Folha se referia aos modos como o jornalismo brasileiro lidou com os vários escândalos de corrupção envolvendo o Partido dos Trabalhadores (PT), colocando-se como um dos principais promotores da derrubada da então presidente Dilma Rousseff. Essa fala expressa uma compreensão sobre o jornalismo, sua cultura profissional e seu propósito como instituição que serve de base para a reflexão que segue.
O primeiro ponto que merece destaque é a percepção já naturalizada de que o jornalismo tem um propósito de serviço a ser desempenhado e que, além disso, este serviço está à disposição da democracia. Isso porque uma das guias de sustentação dessas normas e técnicas é a ideia – e o ideal – de que o jornalismo acompanha vigilante os poderes do Estado e o coloca em xeque sempre que necessário. De acordo com essa lógica de atuação, o exercício do jornalismo combativo frente aos mandos e desmandos do Estado tem sua inspiração em uma ética liberal fácil de ser identificada: proteção das liberdades civis e exaltação dos direitos individuais. Tem-se, então, o ambiente propício para a imprensa se colocar como plataforma fundamental de debates cívicos, ao ponto de questionar a legitimidade de qualquer democracia que não coloque a liberdade de imprensa como um de seus pilares.
É nesse contexto que fica evidente o chamado “pacto de credibilidade”[3]: um acordo implícito entre os jornalistas e suas audiências, constituído em grande parte pelo pressuposto de que a imprensa detém a legitimidade para narrar o mundo. Por sua vez, a legitimidade é estabelecida com base em narrativas críveis, nas quais as normas e técnicas do fazer jornalístico, justamente aquelas que Mario Vitor Santos põe em destaque em sua coluna, desempenham um papel fundamental. Mas, obviamente, essas narrativas não são críveis apenas porque seguem as regras instituídas pelo jornalismo dito moderno, mas também porque o próprio jornalismo garantiu para si a legitimidade de contar essas estórias. Essa garantia, evidentemente, está em disputa constante e pressupõe inúmeros questionamentos e críticas. Não é segredo, portanto, que a distância entre o que a imprensa prega e o que ela faz sempre foi um ponto de debate dentro e fora das redações, com ênfase especial para os estudos acadêmicos.
A maior parte dos estudos críticos à atuação da mídia se dedicam a mostrar que o jornalismo praticado tem forte viés político, muitas vezes em violação da função de crítica das ações do Estado, que a mídia arroga a si própria. Pretendemos aqui adotar outra estratégia de investigação e perguntar: será que a suposta atividade de vigilância crítica da mídia é igual no que toca os diferentes poderes e instituições do Estado?
Tomemos como exemplo o Judiciário Federal, o Ministério Público e a Polícia Federal. Juntas, essa tríade reúne, em média, 250 notícias por mês nos principais jornais brasileiros. Ou seja, podemos concluir que essas instituições ocupam um lugar de atenção na imprensa. São dignas de nota e de serem notadas, estão no radar do vigilante jornalismo que busca expor os abusos de um Estado cada vez mais envolvido em escândalos de corrupção. Até aí, nada de anormal.
O curioso, no entanto, é perceber que as menções a essas instituições, em grande maioria, podem ser identificadas como neutras. Isso é particularmente interessante quando se pensa que, duas dessas instituições, o Ministério Público e a Polícia Federal[4], estão sempre na órbita dos escândalos políticos publicizados pela imprensa. Só para ilustrar um pouco esse ponto, um levantamento feito por Solano Nascimento[5] mostra o papel preponderante que o MP vem desempenhando na exposição dos escândalos políticos. Partindo da análise de três revistas de circulação nacional – a Veja, a Isto É e a Época -, o autor constata que o MP produziu as informações basilares de 42% dos escândalos que eclodiram no ano de 2002. Em números absolutos, foram identificadas 38 reportagens com denúncias nesses veículos e, dessas, 16 foram parcial ou integralmente feitas com informações do MP.
Claro que, como essas instituições ocupam o lugar privilegiado de “fontes” de escândalos[6], facilmente são colocadas em um patamar diferenciado de análise crítica. Mas a naturalização desse pensamento não parece ser ingênua, pois ao manter tais instituições com a credibilidade pouco questionada a imprensa pretende manter a credibilidade de suas próprias narrativas, em especial as escandalosas.
Afinal, poderíamos pensar, como seriam esses escândalos se a PF e o MP estivessem o tempo todo na berlinda do julgamento crítico da imprensa? O escândalo, nesse contexto hipotético, ainda seria usado como uma bandeira ética e de legitimidade do jornalismo, sempre pronto para reverberar o seu papel como “instituição fundamental para a manutenção democrática”? Em outras palavras, se as informações que viram escândalos vêm de instituições que aparecem sempre em descrédito na imprensa, que tipo de confiança poderia ser estabelecida?
Não se trata, no entanto, de questionar a idoneidade dessas instituições. Trata-se de pensar que ao se isentar o Ministério Público e a Polícia Federal, o jornalismo brasileiro tenta constituir sua legitimidade e autoridade praticando o avesso do que prega.
Os dados colhidos pelo Manchetômetro, entre maio de 2017 e março de 2018, mostram que Folha de S. Paulo, Estadão, O Globo e Jornal Nacional mantiveram esse padrão benigno da cobertura em relação a essas duas instituições. Só no mês de janeiro de 2018, quando se intensificou o burburinho da prisão de Lula, mais de 140 notícias foram veiculadas sobre o Ministério Público e a Polícia Federal. No mês seguinte, foram mais de 160 notícias – levando em consideração todas as valências computadas pelo site.[7]
Ainda de acordo com os dados desses primeiros três meses do ano, a valência neutra em relação às notícias sobre o MP e a PF foi sempre mais do que o dobro da valência contrária, o que causa um descompasso evidente. Juntamente com o Judiciário Federal, essas instituições são as únicas que nunca tiveram valências contrárias ou ambivalentes ultrapassando as neutras. Considerando que as análises aglutinam dados de quase um ano, esse é um tempo considerável para se manter em uma posição tão confortável, sendo instituições com tamanha visibilidade.
Parece-nos que, ao colocar tão pouca suspeita nessas instituições, o jornalismo firma um “pacto de neutralidade” com o intuito de emprestar maior credibilidade à exposição de escândalos. Em estudos futuros podemos pensar na comparação das coberturas em diferentes períodos de escândalos. Afinal, não se pode afirmar apenas com a explicitação dos dados acima que a pacífica relação entre a imprensa, o MP e a PF se deve à intenção de manter a confiabilidade das fontes de escândalos.
Podemos, contudo, refletir a respeito desse padrão. Obviamente, o jornalismo não precisa ser combativo e crítico aos poderes da república para ser jornalismo. Mas, a partir do momento que ele diz perseguir tal ideal, abre-se a possibilidade de checarmos se isso de fato é feito. Como mostramos acima, longe de se ater ao que promete, a grande imprensa pratica uma crítica seletiva e conveniente.
O exame da maneira como o jornalismo trata diferencialmente instituições nos fornece pistas a respeito do compromisso democrático que tem guiado não apenas as empresas de mídia, mas também as análises recorrentes sobre o papel dos veículos de imprensa no jogo político.
O escrutínio das ações daqueles que se dizem guardiães do interesse público é fundamental para a defesa da democracia, particularmente quando ela se encontra fragilizada devido a intensa publicização de escândalos ocorrida nos últimos anos. Depois de um golpe recente e com a promessa de eleições tumultuadas à frente — cenários constituídos e fortalecidos com apoio desses escândalos –, rever as bases que sustentam as narrativas no jornalismo é exercício urgente. Comecemos então por desvelar as estratégias jornalísticas por trás da naturalização da culpa e da neutralidade na grande cena da política nacional.
[1] Jornalista. Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (PPGCOM/UFF).
[2] Texto “Apocalipse do jornalismo”, veiculado em sua coluna na Folha de S. Paulo, no dia 18 de maio de 2016. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/05/1772331-apocalipse-do-jornalismo.shtml#_=_>. Acesso em 9 mai. 2018.
[3] Esse termo e seus sentidos são bem desenvolvidos em um texto dos pesquisadores Muniz Sodré e Raquel Paiva. Para mais informações, ver: “Jornalismo Contemporâneo: figurações, impasses e perspectivas”. Salvador: EDUFBA; Brasília: Compós, 2011.
[4] Decidiu-se por não incluir considerações a respeito do Judiciário, por considerar que este poder tem especificidades que mereceriam ser tratadas à parte, o que não poderia ser feito aqui por limites de espaço. No entanto, vale lembrar que o Manchetômetro já deu pistas sobre essa questão, ao abordar a falta de notícias, na grande mídia, a respeito do pedido de impeachment do ministro Gilmar Mendes. Disponível em: <http://www.manchetometro.com.br/index.php/publicacoes/serie-m/2017/07/06/o-impeachment-de-gilmar-mendes-ou-a-noticia-que-ainda-nao-houve/>.
[5] Para mais informações sobre esse estudo, indico a leitura do artigo “Reportagens com denúncias na imprensa brasileira: análise de duas décadas da predileção por mostrar problemas”, publicado pelo autor em 2013, na revista Verso e Reverso (Unisinos).
[6] Há de se mencionar, no entanto, que algumas dessas instituições já se colocaram no centro de escândalos. É o caso da Polícia Federal, em situação ocorrida em 2017, nas investigações e consequente prisão do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
[7] Obviamente, é preciso pontuar que, caso elas aparecessem em menor número, isso não justificaria uma padronização mais neutra, mas poderia ser um pacificador de argumentos, se considerado por uma ótica otimista.