Cobertura do “Lula Livre”
Após 580 dias preso na Superintendência Regional da Polícia Federal do Paraná o ex-presidente Lula foi posto em liberdade no dia 8 de novembro. Lula é personagem frequente do noticiário e sua soltura estampou as capas de todos os jornais de grande circulação no dia seguinte. Tão importante quanto entender o agendamento da mídia, isto é, as pautas as quais os meios dão preferência, é identificar os enquadramentos por meio dos quais noticiam os acontecimentos. As pesquisas do Manchetômetro tem revelado, desde 2014, uma abordagem bastante negativa da cobertura midiática em relação às instituições políticas e especificamente ao Partido dos Trabalhadores e seus representantes. Em outras artigos da Séries M revelamos que tal viés também se confirma em relação a Luiz Inácio Lula da Silva. — você pode acessar esses artigos da série clicando aqui. Resta saber de que maneira os três periódicos monitorados pela nossa equipe decidiram noticiar a liberdade de Lula.
O Globo
Em sua manchete do dia 9 de novembro, O Globo destaca as críticas de Lula à Lava Jato e a Jair Bolsonaro em seu primeiro discurso após sair da carceragem da Polícia Federal[1]. O texto pontua a afirmação do ex-presidente de que o país está pior e destaca a fala de que seu coração não tem espaço para o ódio, somente para o amor, citando inclusive sua nova namorada Rosângela da Silva. A chamada ainda abre espaço para Jair Bolsonaro que não comenta a libertação de Lula.
O jornal, entretanto, não escreve nenhum editorial sobre o tema da soltura, preferindo discutir alguns aspectos da prisão em segunda instância somente no editorial do dia 10 de novembro. No texto, o jornal carioca analisa uma possível convergência no Congresso para alterar o texto constitucional que define o que é trânsito em julgado. Para O Globo, o combate entre Lula e a Operação Lava Jato foi peça fundamental na mudança de compreensão do Supremo quanto à prisão em segunda instância. O jornal relembra dois votos em seu editorial: um primeiro do decano Celso de Mello, que cita o Mensalão e o Petrolão, e o voto do presidente da Corte, Dias Toffoli, destacando o poder do Legislativo de modificar o Código de Processo Penal e alterar a questão sobre trânsito em julgado. O discurso de Lula é retomado pelo editorial que chama o ex-presidente como mais um “líder político a tentar falsificar a História”[2]. Assim, O Globo, a despeito parecer evitar entrar em conflito direto com o ex-presidente, aposta no enquadramento de polarização entre Lula e Lava Jato ao passo que descreve o ex-presidente como um mentiroso, falsificador da história, acusação que o jornal frequentemente faz contra Jair Bolsonaro.
O Estado de S. Paulo
Em sua primeira manchete sobre a soltura do ex-presidente Lula, o Estadão é taxativo: Lula reacendeu a polarização[3]. No texto que acompanha a manchete, o jornal destaca a proposta de Lula de rodar o país para propor alternativas ao governo Bolsonaro e suas críticas ao ministro Sérgio Moro e à Lava Jato. O texto também relembra a condenação e a inelegibilidade de Lula, além de protestos convocados por movimentos como o MBL e o Vem Pra Rua contra o ex-presidente.
Em seu primeiro editorial sobre a soltura de Lula, apenas no dia 12 de novembro, o Estadão constrói uma narrativa de polarização em que “lulopetismo” e bolsonarismo estariam em confronto direto e vil, com o objetivo de produzir soluções antidemocráticas. O jornal destaca que os dois grupos políticos não possuem interesse em uma “política civilizada” e relativizam comportamentos criminosos, o que apenas favorece a descrença na política no Brasil. Ao final de seu texto, o jornal é direto: as forças democráticas devem restabelecer o diálogo entre si e com a sociedade para construir uma alternativa eleitoralmente viável[4]. O Estadão com isso fortalece uma narrativa de polarização da política, com Lula e Bolsonaro em polos opostos e a sociedade democrática ao centro.
Folha de S.Paulo
A manchete do dia 9 de novembro, dia seguinte à soltura, contém evidente viés negativo ao ex-presidente. A notícia da liberdade enfatiza imagem polarizada e violenta de Lula, já que “ataca PF, Lava Jato e Bolsonaro”[5]. À semelhança dos demais jornais, a Folha limitou-se no dia seguinte a essa capa, dedicando um dos editoriais a decisão do STF, que considerou “retrocesso penal”, e outro sobre os trinta anos da queda do muro de Berlim. Apesar da decisão do Supremo culminar na soltura de Lula, o jornal não cita o evento em seu editorial, mas apenas questiona o novo entendimento que segundo seu editorial teria como efeito colateral provável “estimular os crimes do colarinho branco”[6]. Lula vira pauta na segunda-feira (11), quando é cognominado cacique[7]. Explorando a imagem da polarização, messianismo e populismo, a Folha descredibiliza o ex-presidente em três níveis: passado, questionando a narrativa a respeito dos feitos do governo Lula; presente, criticando sua postura após a liberação como de um “mártir” político; e futuro, ao atribuir a ele o projeto de apostar na polarização da política brasileira. O editorial pinta Lula e Bolsonaro como protagonistas dessa polarização “irracional e não programática”, posição bastante temerária do ponto de vista jornalístico, dadas as imensas diferenças entre os projetos políticos que animam cada uma das figuras.
Conclusão
Como podemos constatar na análise acima, os três jornais enquadraram a libertação de Lula com enquadramentos afins:
- negam a contribuição do ex-presidente para política nacional,
- rejeitam sua intervenção no presente, denunciando-a como extremista, antidemocrática e populista,
- responsabilizam Lula por supostamente promover a polarização política no país.
Jair Bolsonaro marca presença nas três narrativas como o antípoda de Lula, aquele que cumpre a função de demonstrar o quão o ex-presidente está radicalizado.. A narrativa dos jornais reforça que a saída de Lula da carceragem da Polícia Federal fortalecerá a polarização da política brasileira, com prejuízos às instituições democráticas. Ao colocarem Lula no nível de Bolsonaro, os jornais pintam o petista como uma ameaça à democracia, lançando sobre suas ações um manto de ilegitimidade. .
Resta saber quais seriam a forças democráticas e legítimas que trariam estabilidade à política brasileira.
[1]Solto, Lula ataca Lava Jato e Bolsonaro, que evita confronto. O Globo, Manchete em 9 de novembro de 2019.
[2]Congresso deve debater prisão em segunda instância. O Globo, Editorial em 10 de novembro de 2019.
[3] Lula deixa prisão, ataca Moro e Lava Jato e reacende polarização. Estado de S. Paulo, Manchete em 9 de novembro de 2019.
[4]Política aviltada. Estado de S. Paulo, Editorial em 12 de novembro de 2019.
[5] Após 580 dias, Lula deixa prisão e ataca PF, Lava Jato e Bolsonaro. Folha de S. Paulo, Manchete em 9 de novembro de 2019.
[6] Retrocesso penal. Folha de S. Paulo, Editorial em 9 de novembro de 2019.
[7] Eles contra eles. Folha de S. Paulo, Editorial em 11 de novembro de 2019.