A culpa é do Evo? A grande mídia brasileira e o golpe na Bolívia
Brasília – O presidente da Bolívia, Evo Morales, discursa durante almoço no Palácio Itamaraty (José Cruz/Agência Brasil)
Este ensaio analisa a cobertura dos jornais brasileiros de maior circulação nacional sobre os conflitos políticos recentes na Bolívia. O país latino-americano, tal como Honduras em 2009, Paraguai em 2012 e Brasil em 2016, enfrentou recentemente um processo de destituição do presidente eleito que muitos analistas classificaram como “golpe”. Embora não seja interpretação unânime, o embasamento para esta qualificação é consistente: em 10 de novembro, Evo Morales e seu vice-presidente, Álvaro García Linera, renunciaram, após “sugestão” das Forças Armadas do país, argumentando que a violência entre os bolivianos, além de insustentável, havia atingido também seus próprios familiares e companheiros de legenda partidária. Para dar somente dois exemplos, a casa da irmã de Morales foi incendiada, e a prefeita de Vinto, Patrícia Arce, do Movimento para o Socialismo (MAS), mesmo partido de Evo, foi sequestrada por oposicionistas e torturada publicamente.
Ainda que os protestos e a violência na Bolívia tenham precedido o momento de renúncia de Morales, é a partir desse divisor de águas que os rumos futuros de governo ficam mais incertos e o enfrentamento entre os principais atores institucionais chegou ao ponto da ameaça à integridade física das lideranças políticas mais importantes do país. Não é objetivo deste texto reconstituir os inúmeros ocorridos de tais dias, mas sim evidenciar qual foi o enquadramento dado pela grande mídia brasileira ao desenrolar dos acontecimentos[1]. Para isso, examinamos os textos veiculados nos jornais impressos O Estado de S. Paulo (Estadão), Folha de S. Paulo e O Globo durante o período de 11 a 13 de novembro, temporada que abarca o episódio da destituição e a tensa saída de Morales e Linera, presidente e vice-presidente, para o exílio no México.
O intenso conflito político instaurado entre os bolivianos foi tema relevante nos jornais em todos os dias analisados. O agendamento do assunto ganhou espaço similar nos três impressos, com fotografias de destaque nos dias 11 e 12, bem como manchete na Folha e chamadas nas capas do Estadão e d’O Globo no dia 13. Contudo, mais do que a mera abertura para o tema, é possível apontar certas convergências acerca dos aspectos considerados na redação dos textos, como também nos ignorados. A seguir, comentamos os conteúdos das primeiras páginas; posteriormente discutimos os editoriais; indicamos as valências das notícias, colunas de opinião e entrevistas que se referiam a Evo Morales; e, por fim, sugerimos alguns contrapontos que expressam falhas e vieses na cobertura.
CAPAS, MANCHETES E CHAMADAS
Os três grandes jornais brasileiros deram centralidade à crise na Bolívia no dia 11 de novembro, data da renúncia de Evo Morales, que foi seguida pela mesma atitude de outros quatro personagens na linha sucessória – o vice-presidente Álvaro García Linera, a presidenta do Senado Adriana Salvatierra, o vice-presidente do Senado Rubén Medinaceli Ortiz e o presidente da Câmara dos Deputados Victor Borda. Entre as capas, ganhou destaque no Estadão a comemoração da oposição, o relato sobre a renúncia, a denúncia de irregularidades nas eleições feita pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e a violência que acometia o país. Por outro lado, além de comentários do próprio Evo Morales, o encerramento do texto na página é com o opositor Carlos Mesa declarando “o fim da tirania” e uma nota de Bolsonaro defendendo o voto impresso para evitar fraudes.
Na Folha de S. Paulo, por sua vez, o trecho de capa faz uma descrição sobre a renúncia e encerra com as posições de Bolsonaro e Lula. O jornal O Globo estampou a foto dos principais atores desse processo: os militares. Enunciando que a renúncia ocorreu por “protestos e pressão militar” e “em meio à denúncia de fraude eleitoral”, o impresso enfatiza um quadro de crise e manifestações contra Morales, informa o argumento dele, de que foi vítima de um golpe civil-militar, mas o deslegitima, dizendo em seguida que essa “tese” foi rejeitada por oposicionistas e pelo presidente brasileiro, Jair Bolsonaro.
Figura 1: Capas dos jornais impressos em 11 de novembro de 2019.
Fonte: Acervos Digitais/Manchetômetro (2019).
No dia 12 os impressos noticiaram nas capas o acirramento da crise, com fotografias de violência nas ruas, menções ao contexto de “vazio” de poder e ao exílio de Morales no México. Nesta data, as Forças Armadas começaram a aparecer mais regularmente nos textos dos jornais como um agente de pacificação do país. No Estadão os enfrentamentos nos espaços públicos, a invasão da casa de Evo e a solicitação da polícia de ajuda dos militares nos confrontos são realçados. A Folha de S. Paulo coloca em evidência a declaração do comandante Williams Kaliman de que as tropas teriam ido às ruas para conter vândalos. Segundo o texto da primeira página, o objetivo dos militares entrarem em combate era coibir os apoiadores de Morales que conclamavam guerra civil; enquanto o ex-presidente agradecia o apoio das manifestações. No Globo, por fim, a manchete afirma peremptoriamente que a “Bolívia busca uma saída constitucional para a crise”, negando assim que tenha havido um golpe de estado no país.
Figura 2: Capas dos jornais impressos em 12 de novembro de 2019.
Fonte: Acervos Digitais/Manchetômetro (2019).
Passada a renúncia e exílio de Evo Morales, no dia 13 de novembro a crise boliviana ganha espaço mais acanhado nas capas. Apenas a Folha veiculou uma foto e a manchete “Em manobra, senadora se diz presidente da Bolívia”. O Estadão e O Globo tocaram no tema em chamadas. De maneira geral, os impressos destacaram nestas páginas a falta de legitimidade que Jeanine Añez obteve por ter feito uma autoproclamação sem quórum suficiente no Congresso. Tal informação é ponderada, entretanto, por outros fatores, sobretudo nos textos no interior dos jornais, que apontam o reconhecimento de governos estrangeiros sobre o status da senadora, bem como a importância deste episódio para a reconstrução da democracia na Bolívia.
Figura 3: Capas dos jornais impressos em 13 de novembro de 2019.
Fonte: Acervos Digitais/Manchetômetro (2019).
EDITORIAIS
Entre os editoriais dos três jornais que monitoramos, o de O Globo é o único que nomeia o ocorrido como um “golpe preventivo”, mas não sem antes atribuir sua responsabilidade a Evo Morales. Os três impressos sublinham a suposta ambição do líder de se perpetuar no poder e, após uma série de críticas sobre a forma que lhe garantiu a possibilidade de disputar mais um pleito e sobre as suspeitas de fraude eleitoral, devolvem a Evo a alcunha de golpista, autor de manobras, culpando-o, portanto, pelo golpe que sofreu.
Para além de lançarem a culpa do golpe sobre Morales, os editoriais não dão importância às medidas polêmicas e de extrema violência física e simbólica postas em prática pelas forças de oposição, conforme imagens que tomaram as redes ilustram. Quando mencionam a oposição, isto é feito pontualmente. A instabilidade do momento é vista como um desdobramento do vácuo de poder ocorrido em consequência das renúncias dos políticos do MAS.
Outra interpretação comum a O Globo e à Folha é o vislumbre de um desfecho positivo para o golpe. A Folha evoca genericamente que “qualquer solução que não passe pelo respeito à legalidade constitucional deve ser repudiada”, como se isso já não tivesse acontecido, e aponta uma nova eleição como único caminho adequado. O Globo recomenda a construção de um governo provisório e a realização de eleições gerais limpas e justas, com supervisão internacional, antes de 21 de janeiro, quando terminam os mandatos legislativos, “como única saída aceitável, para que conflitos naturais numa democracia não levem forças autoritárias, de qualquer lado, a tentar aventuras”, como se isso já não tivesse acontecido. Ou seja, nesses casos, o golpe não é apresentado como ruptura, mas como o ato que fez possível uma solução democrática. O Estadão, por outro lado, destaca a instabilidade e a incerteza, dizendo que “a verdade é que ninguém é capaz de dizer quem governa a Bolívia hoje e menos ainda o que acontecerá com o país amanhã”, considera a renúncia de Evo como um “um lampejo de sensatez”, mesmo tendo ocorrido sob ameaça de morte do líder e de seus familiares e com envolvimento das forças de segurança do estado.
NOTÍCIAS, COLUNAS E ENTREVISTAS
Parte dos pontos sugeridos nos editoriais são desenvolvidos ao longo das notícias, colunas e entrevistas circuladas entre os dias 11 e 13. Nesta etapa do nosso ensaio, apresentamos as valências das referências a Evo Morales a partir dos seguintes critérios: a classificação de “contrária” foi atribuída a escritos que, de modo abrangente, responsabilizaram o ex-presidente pelo golpe, argumentando que a crise política em curso na Bolívia tinha como origem e causa o desejo do político de se perpetuar no poder. Na Folha de S. Paulo, por exemplo, Hélio Schwartsman declarou que Morales “insultou os deuses da democracia e, assim, causou a sua própria perdição”; Rubens Barbosa escreveu “o golpe não é contra Evo, mas dele próprio”. Este enquadramento predominou em todos os meios, ficando atrás somente dos casos “neutros”, que se referiam apenas à descrição dos acontecimentos, com relativo equilíbrio entre os personagens ouvidos.
Nos casos “ambivalentes” a culpabilização de Morales por tentar o quarto mandato também aparece, mas é contrastada com elogios à gestão econômica e política do líder indígena, assim como afirmações contundentes de que o presidente sofreu um golpe. Finalmente, os poucos textos elencados como “favoráveis”, se referiram às colunas de Breno Altman na Folha e de Paulo Beraldo no Estadão, que acusaram o golpismo da oposição ressaltando que Evo Morales já havia aceitado o diálogo e assinalado a convocação de novas eleições.
Vale pontuar um último fator na cobertura midiática sobre a Bolívia: o modo como alguns repórteres costumam exotizar a população ou manifestar visões negativas sobre o país. Impressões discriminatórias aparecem, por exemplo, quando Rubens Barbosa – na edição da Folha do dia 12 – sugere que “Evo Morales, populista e autoritário, pode tentar voltar ao poder nos braços dos mineiros (armados de dinamite) e dos plantadores de coca”. Mineiros ou plantadores de coca são parcelas significativas do povo boliviano, e mesmo que fossem minorias diminutas, não deveriam ter sua opinião política menosprezada ou apresentada de modo caricato.
Outro exemplo de viés é a tentativa de Sylvia Colombo de situar os leitores na realidade boliviana com base em uma seleção parcial de dados. A repórter salienta que a Bolívia é campeã na América Latina em violência contra mulheres, mas deixa de mencionar que o país também se notabiliza na região e no mundo pela alta taxa de representação feminina na política. Mineiros com dinamites, índios plantadores de coca, abusadores de mulheres, o rebaixamento moral do outro, como feito nesses textos, historicamente serviu para justificar sua submissão, é um discurso colonial clássico, agora saído da pena desses jornalistas brasileiros.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este ensaio buscou apresentar um relatório de como o golpe na Bolívia foi enquadrado nos principais meios de comunicação impressos do Brasil. Em medida considerável, os jornais atribuíram a culpa a Evo Morales. E o fizeram frequentemente baseados em duas outras interpretações: de que a alternância de poderes é uma regra vital de sistemas democráticos; e de que o relatório da OEA é evidência precisa e incontestável de fraude eleitoral frente à tentativa desonesta dos partidários do MAS de permanecerem no governo. Para ambas, no entanto, cabem ponderações.
A perpetuação na presidência e a acusação de manobra nos pleitos eleitorais são apontados como indícios autoritários das gestões de Morales na Bolívia, mas não apareceram regularmente na grande mídia brasileira quando da tentativa exitosa de Fernando Henrique Cardoso de criar o instituto da reeleição, a despeito da acusação de compra de votos de parlamentares feita por repórter da própria Folha de S. Paulo. Ademais, não encontramos críticas desses mesmos jornais à perpetuação no poder de governantes nos regimes parlamentares europeus, como foi o caso de Margareth Thatcher no Reino Unido e, mais recentemente, de Angela Merkel na Alemanha, entre tantos outros.
O mesmo pode ser dito do relatório da OEA, que é tomado praticamente como verdade, associado à comprovação de uma “fraude”, sem maior cautela. Na realidade, o documento não faz afirmações tão contundentes e só discute evidências mais robustas para demonstrar uma possível diferença do percentual que separaria Evo Morales do segundo colocado do pleito, o candidato Carlos Mesa. No limite, isso indicaria a necessidade de uma nova disputa entre os dois, mas não de “golpe” do governo em situação.
Os jornais abordaram o golpe da Bolívia de uma maneira tendenciosa, questionando até mesmo a própria natureza do acontecimento, deixaram, em grande medida, de noticiar as gravíssimas agressões de caráter misógino e racista produzidas no decorrer desse conflito político. A informação de violência contra a prefeita do partido de Morales, Patrícia Arce, só foi notificada rapidamente em um artigo circulado no Globo, por Claudia Antunes, no dia 11 de novembro. Os episódios de queima de bandeiras indígenas – as Wiphala – só saiu em pequeno texto de Marina Gonçalves, em 12 de outubro. Diferentemente da visão de que os grandes conglomerados de comunicação brasileiros são conservadores na economia e liberais nos costumes, o presente estudo sobre a cobertura do golpe na Bolívia mostra a politização conversadora da mídia para além da agenda meramente econômica, com a inclinação a discriminar e invisibilizar grupos sociais mais desfavorecidos.
NOTAS
[1] Para um texto de reconstituição do processo, ver, por exemplo, BERNARDES, Marília. Uma proposta de cronologia para a Bolívia: um golpe em dois tempos. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2019/11/15/UMA-PROPOSTA-DE-CRONOLOGIA-PARA-A-BOLDVIA-UM-GOLPE-EM-DOIS-TEMPOS Acesso em 17 de novembro de 2019.
REFERÊNCIAS
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